António Martinó de Azevedo Coutinho
Prometêramos, a propósito desta ida ao Congo, a tentativa de penetrar um pouco na própria consciência de Hergé.
Antes de o fazermos, recapitulemos com um maior desenvolvimento o recente episódio parlamentar acontecido em França, já atrás sumariado.
O deputado Christian Vanneste interrogara o ministro da Cultura e da Comunicação, Frèdèric Mitterrand, sobre a aplicação de censura ao livro Tintin no Congo solicitada por algumas associações comunitárias ou de extrema esquerda.
A sociedade Moulinsart, que administra as obras de Hergé, divulgou por esses finais de 2009 o seguinte comunicado: "Ler em pleno século XXI um álbum de Tintin, datado de 1931, exige um mínimo de honestidade intelectual. Isto evitaria que mergulhássemos tanto nos mais fáceis anacronismos como nas mais correntes complacências. A sociedade veria com bons olhos a opinião do Governo sobre este assunto”.
E essa opinião, divulgada oficialmente, foi a seguinte:
“As contestações que visam actualmente Tintin no Congo são o prolongamento de uma polémica que ressurge a intervalos regulares. As solicitações para proibir o álbum de Hergé, ou as exigências da inserção de um aviso para os leitores, vêm na sequência de um processo intentado na Bélgica e de decisões tomadas por bibliotecas e por uma rede de livrarias estrangeiras, no sentido de confinar a obra a sectores reservados aos adultos. A versão do álbum em questão é a que Hergé publicou em 1931. O autor empreendeu a sua reformulação em 1946, consciente de ter sido influenciado por representações coloniais que caracterizaram a sua época e o seu meio. No entanto, o álbum de Hergé não revela nem virulência ideológica nem características odiosas. Os limites permitidos pela legislação francesa sobre o princípio da liberdade de expressão são definidos de forma estrita e não justificam a aplicação sistemática dos pedidos de proibição. Tal evolução seria contrária tanto ao espírito como à letra da Lei de 13 de Julho de 1990, tendente a reprimir os actos racistas, anti-semitas ou xenófobos. O caso específico das publicações destinadas à juventude, regulamentado pela Lei de 1949, que confere competências sobre o tema à autoridade administrativa, também não autoriza a banalização da censura. A aplicação destas disposições exige uma vigilância extrema e um particular discernimento, a fim de se obter uma rigorosa preservação da liberdade de criação, as penalidades aplicadas às violações da dignidade humana e o respeito pela pluralidade das identidades.”
Georges Remi já não assistiria a mais este episódio. Mas viveu os outros, já relatados, sobretudo a partir dos anos 60.
O seu testemunho mais expressivo sobre as acusações raciais de que foi alvo ficou contido no volume Tintin et Moi - Entretiens avec Hergé, redigido por Numa Sadoul e editado pela Casterman, em 1975. Aí se contêm as notáveis entrevistas realizadas em Outubro de 1971, com excepção de um pequeno excerto publicado em Cahiers da la Bande Dessinée n.º 14/15, Especial Hergé, em Dezembro de 1971.
Eis as suas passagens mais expressivas quanto ao assunto em causa:
Sadoul – Você fala de convenções: é certo que fazer os Negros falar “à preto” deriva mais duma popular tradição cómica do que de um subjacente racismo. Mas, enfim, não é mau de todo por vezes desprezar as tradições... Creio que Tintin no Congo, por razões análogas, terá sofrido uma longa quarentena, ou não?
Hergé – Sim. Mas sabe onde isso foi anotado pela primeira vez? Numa revista zairense!...
Sadoul – Disseram e repetiram muitas vezes que você é racista. É chegado o momento de pôr ordem nas coisas: que tem a dizer em sua defesa? Que responde quando o tratam como “racista”?
Hergé – Respondo que todas as opiniões são livres, incluindo essa que pretende que eu seja racista... Mas, enfim, seja! Houve Tintin no Congo, reconheço-o. Foi em 1930. Não conhecia desse país senão o que as pessoas contavam na época: “Os negros são crianças crescidas... Felizmente para eles, nós estamos lá! Etc...” E eu desenhei-os, esses Africanos, segundo tais critérios, no mais puro espírito paternalista que era o da época, na Bélgica. (...) Para o Congo, tal como para Tintin no País dos Sovietes, aconteceu que eu estava influenciado pelos preconceitos do meio burguês onde vivia. Com efeito, os Sovietes e o Congo foram pecados da juventude.
(...)
Sadoul – Já falámos muito dos Sovietes; podemos portanto passar directamente a Tintin no Congo.
Hergé – O Congo... Porque e como fiz O Congo?... Na realidade, teria preferido enviar Trintin directamente para a América depois do seu regresso da Rússia. Mas o padre Wallez persuadiu-me a começar pelo Congo: “A nossa bela colónia, que tem agora necessidade de nós e para a qual é preciso suscitar as vocações coloniais”, taratata taratabum! Isso não me inspirava por aí além, mas rendi-me a esses argumentos, e toca a marchar para o Congo! Fiz essa história, como já disse, segundo a óptica da época, isto é, num espírito tipicamente paternalista... que era, afirmo-o, o da Bélgica inteirinha. Passemos, sem mais demora, ao álbum seguinte.
Eis as palavras sinceras, simples e honestas de Georges Remi.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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Este clip, retirado duma raríssima entrevista “ao vivo” concedida por Hergé, em 1976, é de origem flamenga, e como tal legendado, ainda que falado em língua francesa. Por este oportuno documento, podemos tomar conhecimento da forma clara e inequívoca, além de culturalmente honesta, como o autor assume as suas “culpas” perante os “erros” cometidos na juventude... Aqui se confirmam, em absoluto, as palavras transcritas no presente capítulo.
.Entrevista Hergé
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