\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

domingo, dezembro 28, 2008

António Martinó de Azevedo Coutinho

CROMOS DA BOLA – V
(sem data, apenas na memória)
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Na última semana recordei brevemente Carlos Canário e António Bentes.
De Manuel Martelo já falei em passada crónica. Filho de uma antiga “glória” do Estrela de Portalegre (também aí guarda-redes e companheiro de Carlos Canário pelos finais dos anos 30) ele tinha ido para Évora, a fim de valorizar a equipa do Lusitano durante a época (1951-52) em que este clube rijamente disputou com o Juventude a promoção ao máximo escalão do futebol nacional.

A anterior equipa de Martelo, o Grupo Desportivo Portalegrense, foi um competidor aguerrido neste mesmo campeonato da II Divisão. No seu reduto, derrotara o Juventude e empatara (2-2) com o Lusitano. E este ponto de diferença (nessa altura a vitória era premiada com 2 pontos e o empate com 1), marcava ainda o campeonato quando se ia disputar, no Campo Estrela, um encontro decisivo da segunda volta: Lusitano de Évora - Desportivo Portalegrense.
É este episódio dramático e eticamente reprovável que hoje aqui evoco, até para que não se pense que todo o futebol dos anos 40, 50 ou 60 era aureolado por manifestações de ingénuo romantismo, como aquelas a que aludi na anterior crónica.
No dia 9 de Março de 1952 uma vibrante multidão enchia o estádio. Pelo Lusitano, para além de Martelo na baliza, batiam-se já alguns dos jogadores que também brilhariam na época seguinte, então já na Divisão maior, como Soeiro, Madeira, Valle, Paulo e Pepe. O nosso Desportivo, liderado pelo veterano e correcto Roqui, contava, entre outros, com Moreno, Robalo, Parra, Santos e Jacinto.
O árbitro, com trabalho bastante desigual de uma para outra das partes, chamava-se Libertino (sic) Domingues e, para supresa geral, o intervalo assinalava a justa vantagem do Portalegrense por 2-1, num desafio que o seu adversário tinha que vencer a todo o custo.
Eu tinha acompanhado a comitiva oficial do Desportivo, pelo que assistia, ao vivo e na bancada central, ao desespero que grassava entre os adeptos eborenses. Uma das maiores “vítimas” do seu descontrolado nervosismo colectivo era precisamente Martelo, na circunstância quase tido como um infiltrado traidor, a soldo do inimigo...

O que se passou na segunda parte é quase inenarrável. Porém, um jornalista desportivo local, Morujo Trindade, estampou a propósito n’A Voz Portalegrense uma crónica dura e corajosa que - ainda isso hoje me espanta - a Censura oficial deixou passar...
Aí ficaram relatadas algumas das violências então acontecidas num vulgar campo da bola deste país de brandos costumes, como as sucessivas provocações de Valle a Roqui que levariam à expulsão de ambos, a selvática agressão de Teixeira da Silva a Robalo, que conduziria este directamente ao hospital local e, sobretudo, a autoritária e patética intervenção final do governador civil de Évora, ao mandar prender os jogadores Roqui e Jacinto, talvez porque estes tivessem oferecido demasiada resistência desportiva ao seu clube!
Ainda a este propósito, lembrarei para sempre as públicas e firmes expressões da justa indignação por parte de alguns qualificados cidadãos portalegrenses presentes no estádio, entre os quais destaco o meu saudoso primo João José Albuquerque, que prontamente recuperariam as “vítimas” de tão lamentáveis incidentes: Roqui e Jacinto, do Governo Civil, e Robalo, do Hospital...
O resultado final - já quase me esquecia de tal pormenor! - foi de 6-2, a favor do Lusitano. Obviamente.
Martelo recompor-se-ia do sofrimento moral que lhe foi infligido nessa tarde pelos seus próprios adeptos e admiradores e contaria muitas jornadas de glória até ao tal dia aziago, em Coimbra, na época seguinte...
Ainda que isso pareça vir a despropósito, não posso esquecer aqui e agora uma proeza que, pouco tempo depois deste triste episódio, marcaria pela positiva o futebol indígena: a final do Campeonato Nacional de Júniores atingido com brilhantismo pela equipa do Desportivo Portalegrense. Obrigando o adversário -nada mais nada menos que a Académica de Coimbra - ao desempate do 1-1 inicial através de uma finalíssima, só aí foi vencida por 2-1. Tal aconteceu na Tapadinha, em Lisboa, no dia 1 de Junho desse ano de 1952, e alguns dos seus protagonistas ainda estão entre nós. Para que conste, nesta terra quase sem memória...
Quanto a Domingos Carrilho Demétrio, o popular Patalino, nunca com ele convivi directamente. Mas sempre admirei, nos campos de jogo, a sua forma elegante e mortífera de alvejar com os pés ou com a cabeça as redes contrárias.
Nasceu pobre, jogou descalço com bolas trapeiras contra outros gaiatos pelas ruas de Elvas e aí foi perseguido por zelosos polícias quando isso era “crime” público... Como aconteceu com quase todos nós. A invulgar habilidade que o distinguia levou-o, sucessivamente, ao ingresso em diversos clubes da sua terra e - imagine-se - em 1943-44 chegou até a envergar a camisola do Lanifícios de Portalegre, ao que parece apenas em dois ou três encontros. Depois de algumas vicissitudes, ingressou no Lusitano de Évora, onde se manteve entre 1952 e 1956. Chegou mesmo a internacional, embora o final da sua carreira futebolista o conduzisse a alguns clubes pouco sonantes.
Morreu em 1989 e a sua terra natal que - ao contrário de Portalegre - distingue e honra a memória dos filhos ilustres, atribuiu-lhe um lugar na toponímia local, concedeu o seu nome ao estádio da cidade e aí implantou solenemente um busto, que o perpetua como o mais famoso desportista elvense.
Aliás, já desde 1948 que estava publicada uma biografia ilustrada de Domigos Demétrio, da autoria de Azinhal Abelho, intitulada Patalino: o astro de “O Elvas”.
Canário, Bentes, Martelo e Patalino - quatro figuras ilustres, distintas no seu perfil ou no seu currículo, idênticas no destaque que merecem entre os maiores desportistas que pisaram o pó ou a relva dos estádios do Norte Alentejano, de Portugal e até do Mundo. Também iguais no lugar que ocupam na memória de muitos de nós...
O pretexto para aqui terem sido evocadas foi comum e convém lembrá-lo: o universo fascinante dos cromos da bola. Daqueles cromos da Idade da Pedra (sim, sim, da pedra ou ardósia escolar!), lambuzados q.b. quando ainda não tinham sido inventadas as assépticas estampas policromadas e autocolantes, repetidas até à exaustão no secreto interior de dourados envelopes surpresa.
Qualquer dia destes, prometo (e se o Mário consentir!) voltar às cadernetas...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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