Knut Hamsun
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NA CERIMONIA em que recebeu o Prémio Nobel, Hamsun começou o seu discurso de agradecimento com a seguinte declaração de humildade: «Não é nada fácil ser eu.» A mesma frase aplica-se a qualquer um dos seus protagonistas. O narrador de Fome, por exemplo, exige do leitor o mesmo enfático diagnóstico: não é fácil se ele. Seguimos as suas peripécias, atordoados e indecisos. Queremos ajudá-lo, mas não sabemos como. Devemos oferecer-lhe dinheiro? Um abraço? Ajuda psiquiátrica?
O narrador é um jovem artista faminto, à deriva nas ruas de Cristiania (Oslo). Vive sozinho, pensa sozinho. Fome é um daqueles raros romances essencialmente sociopatas; podia ter sido escrito por um homem que tivesse passado a vida inteira fechado num quarto.
Os objectivos do narrador são, na sua lunática opinião, modestos: procura apenas inspiração, validação divina do seu inquestionável génio, e um bife mal passado. A sua privação não é vista como uma forma de combate espiritual. O único combate é travado contra a coerência, sob todas as suas formas.
Oscilando constantemente entre uma confiança ilimitada e um dilacerante autodesprezo, a sua mente estranha leva-o a fazer coisas estranhas. Inventa elaboradas mentiras, e palavras novas, de «grande significado gramatical». Tenta penhorar os botões do seu casaco, mas recusa histericamente a generosidade de estranhos. Decide escrever uma tese em três partes sobre o conhecimento filosófico: «Naturalmente, teria oportunidade de chumbar alguns dos mesquinhos sofismas de Kant.»
A tese não passa do estado embrionário (o narrador tenta conjurá-la escrevendo repetidamente a data 1848 em «todosos cantos da página»), mas é tratada como um facto consumado. Os supostos «artigos de jornal» que o vão salvando docolapso iminente surgem como projectos megalomaníacos (ensaios pomposos sobre «os crimes do futuro» ou o «livre-arbítrio»), mas grande parte da sua energia criativa parece ser gasta em tarefas mais prosaicas, como inventar nomes falsos para senhorios inexistentes.
Não há lugar à análise de motivos ou intenções. Ocasionalmente, o seu narcisismo provoca explosões de indignação, mas quase sempre dirigidas a uma fonte exterior. Particularmente hilariantes são as diatribes contra uma pressentida conspiração divina: «À medida que ponderava o assunto, parecia-me cada vez mais incompreensível que me tocasse justamente a mim estar destinado a ser cobaia dos caprichos misericordiosos de Deus. Era um modo de proceder bastante estranho, este de passar por cima do mundo inteiro para escolher-me precisamente a mim. Quando aqui havia outros, como o alfarrabista Pascha ou o despachante naval Hennechen.»
Refém das suas neuroses e da sua exuberante anarquia emocional, o narrador vai obedecendo cegamente a todos os impulsos, concretizando aquelas pequenas sugestões absurdas que uma mente desesperada faz a si própria. Devo mentir a este agente da autoridade? Devo perseguir aquela rapariga até à porta de casa? Devo gastar todo o dinheiro que tenho em bolos de chocolate? Estas questões recebem o mesmo tempo de antena, e são tratadas com a mesma ponderação, que as personagens de George Eliot devotavam a questões de reforma social. Hamsun e Dostoievski foram os primeiros a realçar o homem não como criatura social ou intelectual, mas como sistema nervoso. Isaac Bashevis Singer, apresentando o livro a uma audiência americana, escreveu que toda a literatura modernista vinha de Hamsun. É difícil não notar as semelhanças com os seus herdeiros directos: Kafka e Beckett. Como eles, Hamsun foi um génio cómico. Como eles, quase patologicamente introspectivo.
Fome não nos permite o acesso a um mundo, a um microcosmos naturalista de relações sociais, mas a uma consciência explodida; uma consciência desesperada, que faz do desespero um santuário, e de santuário um inferno.
Publicada originalmente em 1890, Fome é a primeira grande obra-prima do século XX.
NA CERIMONIA em que recebeu o Prémio Nobel, Hamsun começou o seu discurso de agradecimento com a seguinte declaração de humildade: «Não é nada fácil ser eu.» A mesma frase aplica-se a qualquer um dos seus protagonistas. O narrador de Fome, por exemplo, exige do leitor o mesmo enfático diagnóstico: não é fácil se ele. Seguimos as suas peripécias, atordoados e indecisos. Queremos ajudá-lo, mas não sabemos como. Devemos oferecer-lhe dinheiro? Um abraço? Ajuda psiquiátrica?
O narrador é um jovem artista faminto, à deriva nas ruas de Cristiania (Oslo). Vive sozinho, pensa sozinho. Fome é um daqueles raros romances essencialmente sociopatas; podia ter sido escrito por um homem que tivesse passado a vida inteira fechado num quarto.
Os objectivos do narrador são, na sua lunática opinião, modestos: procura apenas inspiração, validação divina do seu inquestionável génio, e um bife mal passado. A sua privação não é vista como uma forma de combate espiritual. O único combate é travado contra a coerência, sob todas as suas formas.
Oscilando constantemente entre uma confiança ilimitada e um dilacerante autodesprezo, a sua mente estranha leva-o a fazer coisas estranhas. Inventa elaboradas mentiras, e palavras novas, de «grande significado gramatical». Tenta penhorar os botões do seu casaco, mas recusa histericamente a generosidade de estranhos. Decide escrever uma tese em três partes sobre o conhecimento filosófico: «Naturalmente, teria oportunidade de chumbar alguns dos mesquinhos sofismas de Kant.»
A tese não passa do estado embrionário (o narrador tenta conjurá-la escrevendo repetidamente a data 1848 em «todosos cantos da página»), mas é tratada como um facto consumado. Os supostos «artigos de jornal» que o vão salvando docolapso iminente surgem como projectos megalomaníacos (ensaios pomposos sobre «os crimes do futuro» ou o «livre-arbítrio»), mas grande parte da sua energia criativa parece ser gasta em tarefas mais prosaicas, como inventar nomes falsos para senhorios inexistentes.
Não há lugar à análise de motivos ou intenções. Ocasionalmente, o seu narcisismo provoca explosões de indignação, mas quase sempre dirigidas a uma fonte exterior. Particularmente hilariantes são as diatribes contra uma pressentida conspiração divina: «À medida que ponderava o assunto, parecia-me cada vez mais incompreensível que me tocasse justamente a mim estar destinado a ser cobaia dos caprichos misericordiosos de Deus. Era um modo de proceder bastante estranho, este de passar por cima do mundo inteiro para escolher-me precisamente a mim. Quando aqui havia outros, como o alfarrabista Pascha ou o despachante naval Hennechen.»
Refém das suas neuroses e da sua exuberante anarquia emocional, o narrador vai obedecendo cegamente a todos os impulsos, concretizando aquelas pequenas sugestões absurdas que uma mente desesperada faz a si própria. Devo mentir a este agente da autoridade? Devo perseguir aquela rapariga até à porta de casa? Devo gastar todo o dinheiro que tenho em bolos de chocolate? Estas questões recebem o mesmo tempo de antena, e são tratadas com a mesma ponderação, que as personagens de George Eliot devotavam a questões de reforma social. Hamsun e Dostoievski foram os primeiros a realçar o homem não como criatura social ou intelectual, mas como sistema nervoso. Isaac Bashevis Singer, apresentando o livro a uma audiência americana, escreveu que toda a literatura modernista vinha de Hamsun. É difícil não notar as semelhanças com os seus herdeiros directos: Kafka e Beckett. Como eles, Hamsun foi um génio cómico. Como eles, quase patologicamente introspectivo.
Fome não nos permite o acesso a um mundo, a um microcosmos naturalista de relações sociais, mas a uma consciência explodida; uma consciência desesperada, que faz do desespero um santuário, e de santuário um inferno.
Publicada originalmente em 1890, Fome é a primeira grande obra-prima do século XX.
42 e 43 actual 20 de Setembro 2008 Expresso
O teste de sanidade
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Como Pound, Céline e outras presenças incómodas no Cânone, Hamsun foi politicamente testado pelo século XX - e falhou. As evidências não deixam grande margem de manobra ao revisionismo: apoiante entusiástico do regime nazi, Hamsun chegou a oferecer a sua medalha Nobel a Goebbels, e a escrever um elogioso obituário de Hitler. A posição mais caridosa que se pode adoptar é atribuir esse percurso à senilidade.
Como Pound, Céline e outras presenças incómodas no Cânone, Hamsun foi politicamente testado pelo século XX - e falhou. As evidências não deixam grande margem de manobra ao revisionismo: apoiante entusiástico do regime nazi, Hamsun chegou a oferecer a sua medalha Nobel a Goebbels, e a escrever um elogioso obituário de Hitler. A posição mais caridosa que se pode adoptar é atribuir esse percurso à senilidade.
Orwell escreveu que para produzir uma grande obra de arte as opiniões de um escritor têm apenas de «ser compatíveis com a sanidade», no mais restrito sentido clínico.
Hamsun é um argumento contra essa tese. A sua mundividência não chega sequer a ser ideologia. As grandes monstruosidades intelectuais obedecem a um padrão bem definido: identifica-se um preconceito e ergue-se um edifício ideológico para o sustentar. Hamsun nunca chegou ao segundo estágio; as suas «opiniões» eram pura patologia. Não havia esqueletos no seu armário - apenas sombras e poeira. R.C.
43 actual 20 de Setembro 2008 Expresso
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