\ A VOZ PORTALEGRENSE: Cinema

sábado, março 24, 2007

Cinema

DVD Caixa com dois filmes de Takeshi Kitano

Um Kitano não e um Kitano sim

Estás-te a Safar? Um Lugar...
Realizador: Takeshi Kitano
Midas
‘Estás-te a Safar?’:*
‘Um lugar à Beira-Mar’:***

Eurico de Barros

Esta caixa junta dois filmes inéditos em Portugal. ‘Estás-te a Safar?’, é dirigido ao público que o consagrou na TV. O outro, ‘Um lugar à Beira-Mar’, aos espectadores que o conhecem e admiram sobretudo do cinema

Aqui há alguns anos, ainda a SIC era pequenina, passava lá um concurso intitulado O Castelo de Takeshi, em que os participantes eram submetidos a uma série de provas e situações cómicas, umas mais humilhantes do que outras. O Castelo de Takeshi era apenas um dos muitos programas grosseiros que fizeram de Takeshi Kitano uma das figuras mais populares da televisão japonesa, e que não têm absolutamente a ver com os seus filmes. O Kitano da televisão e o Kitano do cinema são diferentes como a noite e o dia, como a TVI da Arte, como Jorge Gabriel de Clive James. Esta caixa dupla do realizador japonês agora editada pela Midas, mostra-nos esta sua personalidade dividida através de dois filmes: Estás-te a Safar? e Um Lugar à Beira-Mar.
Vamos ao pior Kitano primeiro. Rodado em 1995, logo após Sonatine, Estás-te a Safar? é um filme disparado como uma seta ao público televisivo do realizador, que prefere vê-lo a gozar com concorrentes atarantados ou com convidados estrangeiros embaraçados, do que a fazer de yakuza ameaçador ou policia taciturno.
Trata-se de uma colecção de gags quase todos primários ou grosseiros, cujo fio condutor é um sujeito obcecado por sexo - mais precisamente, por sexo em automóveis. Estás-te a Safar? Tem um tom surrealista rasca, que se vai acentuando gradualmente, para culminar numa sequência escatológica de virar o estômago do avesso, ligada directamente a uma paródia sem pinga de graça a A Mosca – entre outras incluídas no filme, cinéfilas ou não. No meio deste festival de comédia de baixíssimo QI, lá assoma uma ou outra piada divertida, estando as melhores concentradas na primeira parte de uma sequência de gozo aos filmes de gangsters que celebrizaram Kitano fora do Japão. Mesmo quando abraça deliberadamente a alarvidade, Takeshi Kitano consegue rir-se de si próprio, o que já não é mau. Embora não chegue para safar este Estás-te a Safar?
Passamos ao melhor Kitano, representado por Um Lugar à Beira-Mar (1991), e que apesar de não teryakuzas e polícias, está permeado daquela melancolia contemplativa que se manifesta até nos mais violentos filmes do realizador. Um Lugar à Beira-Mar é a história de um jovem surdo que trabalha na recolha do lixo e quer fazer surf, apesar da troça dos outros rapazes, e que namora uma rapariga surda-muda. Takeshi Kitano filma esta comédia triste sem esticar a corda nem para um lado nem para o outro, mantendo um admirável equilíbrio de tom. Um Lugar à Beira-Mar está o mais próximo de um filme mudo que uma produção dos nossos dias pode estar, no sentido de que o que nele se ouve, entre palavras e sons ambiente, é apenas o estritamente necessário, e a banda sonora só “entra” quando o realizador acha que ela faz sentido. Raras vezes no cinema a relação entre duas pessoas que não falam e não ouvem e gostam uma da outra, e vivem indiferentes a quase tudo que os rodeia, foi mostrada com tanta sensibilidade e uma simplicidade ião expressiva, através dos mais elementares recursos do cinema. Um Lugar à Beira-Mar é um dos melhores filmes de Kitano, e não há um yakuza ameaçador ou um polícia taciturno à vista.
in, - DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 23 MARÇO 2007 - p. 24