"Donos disto tudo" - Jaime Nogueira Pinto
O que distingue uma democracia liberal de outros regimes é aceitar, na competição legal pelo poder, todos os partidos votados pelos cidadãos. Mesmo os iliberais.
O regime ou sistema democrático não é uma espécie de religião laica, com a transferência directa da infalibilidade do Deus do Ancien Règime – que pela Sua graça tornava sagradas as dinastias – para o conjunto dos cidadãos eleitores. É uma forma de governo que procura um modelo consensual, pacífico e ordeiro de institucionalizar a escolha dos representantes de uma comunidade nacional, de um povo.
A sua legitimidade não vem, assim, de uma qualquer superioridade
ético-política, mágica ou misteriosa, de conteúdo revolucionário ou
conservador; vem do facto de se socorrer de um processo histórico que,
alicerçado na aceitação de determinadas regras de jogo e com base em princípios
de liberdade de opinião e de respeito pela opinião dos outros, procura tornar
governável o Estado. Como as opiniões são diferentes – excepto quanto à
aceitação da prevalência da opinião maioritária – não pode haver descriminação
de opiniões.
Os valores políticos, as normas de orientação colectiva, as regras sobre o
público e o privado, o respeito pela vida, os usos e costumes permitidos ou
punidos – são a expressão dos programas ou projectos políticos que os partidos
admitidos a concurso, dentro da Constituição, propõem ou põem em discussão e
levam a votos. Querer pôr este princípio em questão, é pôr em questão o regime
democrático, é viciar o jogo, desencorajar a participação e corromper o
sistema.
Vem isto a propósito da indignação, real ou simulada, em painéis de debate
e discussão televisivos, contra um partido-pária que ousou apresentar como lema
“Deus, Pátria, Família e Trabalho” – coisas, aparentemente, malditas,
escandalosas e proscritas, por terem sido já o apanágio do “fascismo” doméstico
do Estado Novo de Salazar.
Sobre a inutilidade da História das Ideias Políticas
A discussão sobre o “fascismo” do Estado Novo é uma discussão que não vale
muito a pena ter, num caldo político, intelectual e social em que, por
resignação, ignorância ou táctica, se aceita a palavra como sinónimo do antigo
regime ou se esgrime como insulto indiferenciado.
De qualquer forma, o Manuel Lucena, que dava importância a coisas como a
História das Ideias Políticas, tinha um argumento interessante e importante
sobre o assunto, que talvez valha a pena aqui repetir: o Estado Novo tinha
aspectos do fascismo-regime mas pouco ou nada tinha que ver com o
fascismo-ideologia nem com o fascismo-movimento, até porque nascera da Ditadura
Militar, e não de um movimento político revolucionário que disputara o poder
nas ruas com comunistas e socialistas, fazendo depois da Marcha Sobre Roma um
pacto com as forças conservadoras da sociedade italiana.
O Estado Novo resultara, primeiro, do fracasso dos seus antecessores, que
tinham imposto um jugo oligárquico de 16 anos num quadro teoricamente liberal e
“democrático”, mas que a violência tornara monopolista; depois, de uma vaga
europeia autoritária, condicionada pela ameaça comunista; finalmente, de um
contrato entre os militares, sem projecto político próprio, com Salazar, que
tinha um projecto político. Há pontos comuns entre o projecto salazarista e o
fascismo – o nacionalismo, o anti-parlamentarismo, o autoritarismo –, mas o
fascismo (apesar da Concordata de Latrão) tinha um espírito nietzschiano,
pagão, e era estatocrático, sendo o Partido, o PNF, um elemento essencial no
poder e do poder. Bem ao contrário, o salazarismo era nacional-conservador e
social-católico. Não pretendia, pela política, mudar a sociedade, mas antes
mantê-la como estava. Pertencia à direita conservadora, enquanto o fascismo
pertencia à direita revolucionária. Os fascistas – e Mussolini em particular –
queriam, pelo menos ideológica e idealmente, “viver perigosamente”; Salazar
queria que os portugueses vivessem habitualmente.
Assim também a União Nacional, ainda que fosse a única organização de cariz
político permitida no Estado Novo, funcionava como uma mera plataforma para a
selecção e apresentação de candidatos à Assembleia Nacional; era uma organização
que, como tal, não riscava quase nada nas decisões políticas e à qual os
ministros não tinham de pertencer. Ver o Estado Novo como um regime totalitário
de partido único – como o hitlerismo, o fascismo italiano ou o comunismo
soviético – é não ver ou falsear a realidade.
Deus, Pátria, Família, Liberdade, Igualdade, Fraternidade
“Deus, Pátria, Liberdade e Família” é uma divisa de Afonso Augusto Moreira
Pena, o 6º Presidente do Brasil, entre 1906 e 1909. Pena era natural de Minas
Gerais e distinguiu-se no movimento abolicionista. Foi várias vezes ministro
durante o Império e um dos introdutores na República de um certo espírito
tecnocrático e industrialista. Não terá sido propriamente um fascista, ou
sequer um proto-fascista.
“Deus, Pátria, Liberdade e Família”, na versão de Pena, “Deus, Pátria e
Família”, na versão salazarista, ou “Deus, Pátria, Família e Trabalho” na
versão de André Ventura, são enunciados de valores políticos, nacionais e
conservadores que, com esta enumeração ou outra, estão presentes na maioria dos
ideários conservadores europeus e euroamericanos. Estes e outros valores
proclamados – tais como Liberdade, Igualdade e Fraternidade ou Laicismo,
Humanidade, Progresso, Socialismo (que têm uma bem mais longa e sangrenta
história totalitária e de manipulação) – tanto podem ser defendidos
autoritariamente, em ditadura, como podem ser defendidos democraticamente, em
democracia.
Quando já não é proibido proibir
Achar que Deus, Pátria e Família é “fascista”, mesmo na pouco esclarecida
qualificação do regime português, só pode resultar de ignorância ou táctica.
Achar que, a partir de um centro enviesado à esquerda que se autoproclama
democraticamente imaculado, podem traçar-se diabólicas linhas vermelhas para um
lado e angélicos arco-íris inclusivos para o outro, é mau sinal. Achar que,
independentemente da votação obtida, há um partido e um conjunto de eleitores
que devem ser, à partida, excluídos da possibilidade consagrada pela praxe
constitucional de ver eleito um candidato, “seja ele quem for”, a
vice-presidente do Parlamento é, pela lógica do regime, indefensável. Achar
natural que esse mesmo partido fique a um canto da Assembleia com orelhas de
burro enquanto os “partidos de bem” avançam, cantando e rindo, para as
“conversas em família” com o primeiro-ministro que quer falar com todos, é uma
prática de discriminação aleatória que tem tudo para correr mal.
É esta narrativa e esta prática ideologicamente enviesada para aguentar no
poder e defender os interesses dos que se assumem como “mais iguais que os
outros” que começa a levantar cada vez mais dúvidas a cada vez mais pessoas.
Afinal, o que distingue a democracia liberal dos outros regimes é a aceitação e
integração, nas suas regras de jogo, de todas e quaisquer forças políticas que,
independentemente dos valores que defendam, actuem pelas vias pacíficas e de
acordo com as leis constitucionais e civis. Mesmo as iliberais.
Não creio, por isso, que o presente policiamento ideológico e as “linhas
vermelhas” com que se procura segregar um partido e os seus eleitores vão
sequer beneficiar quem está no poder e muito menos o regime. Limitam-se a expor
sob uma luz cada vez mais crua a exemplar democraticidade dos que se acham
“donos disto tudo”.
Jaime Nogueira Pinto
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