\ A VOZ PORTALEGRENSE: Marcelino da Mata e o RALIS

segunda-feira, fevereiro 15, 2021

Marcelino da Mata e o RALIS

Declarações do Alferes Comando, MARCELINO DA MATA, sobre a sua prisão e tortura sofridas no RALIS.

_ No dia 17/5/75, quando me encontrava em Queluz Ocidental, ouvi pela rádio ser comunicado que me encontrava preso, no RALIS. Perante tal absurdo, dirigi-me ao Regimento de Comandos da Amadora, Unidade onde estava colocado, e falei com o oficial de serviço, capitão Ribeiro da Fonseca, ao qual contei o que acabara de ouvir e pedi que esclarecesse a situação.

O capitão Ribeiro da Fonseca, na minha presença, telefonou para o RALIS e falou com o tenente-coronel Leal de Almeida, tendo o mesmo respondido que me deviam levar imediatamente escoltado para esta Unidade. Telefonou ainda o capitão Fonseca para o COPCON falando directamente com o brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, o qual confirmou que me devia entregar ao RALIS pois estavam concentradas todas as operações nesta Unidade.

Foi assim que, escoltado por tenente comando e duas praças, fui levado para o RALIS.

Uma vez chegado à Unidade referida e enquanto o tenente que me escoltava se dirigia ao oficial de serviço, aproximou-se de mim um furriel armado que me disse ter ordens para me levar para a casa da guarda e manter-me aí incomunicável.

Apareceu entretanto um aspirante que me levou para uma sala do edifício do Comando onde permaneci sozinho até às 24.00.

Apareceu depois das 24.00 um indivíduo alto, forte e de cabelo e barba compridos que, intitulando-se segundo comandante do RALIS, mas que depois vim a saber que se tratava de um militante do MRPP conhecido por “RIBEIRO”, me estendeu um papel para aí eu escrever tudo o que sabia sobre o ELP.

Mais tarde apareceu um aspirante e um furriel chamado DUARTE e o capitão [Manuel Augusto Seixas Quinhones de Magalhães] QUINHONES que tornaram a fazer a mesma pergunta.

Uma vez que jamais tinha ligação com o ELP, ou qualquer outra organização, respondi-lhe negativamente.

Entrou então o capitão QUINHONES MAGALHÃES. Disse-me que me ia fazer o mesmo que se fazia na Guiné aos “turras” quando não queriam falar e puxou do seu cinturão, no que foi secundado pelo furriel DUARTE.

Saiu o capitão QUINHONES e regressou acompanhado de outro indivíduo, baixo e forte, que também vim a saber ser do MRPP e conhecido por “JORGE”, e mais outro furriel, aos quais o capitão QUINHONES ordenou que me fossem batendo à bruta até que eu confessasse.

Apareceu então o tenente-coronel LEAL DE ALMEIDA que me disse que os pretos só falavam quando levavam porrada e eram torturados, e que não tinha outra solução senão ordenar que me fizessem isso.

Ordenou o capitão QUINHONES que me encostassem à parede e despisse a camisa, o que tive que fazer. Após isto fui agredido sete vezes com uma cadeira de ferro nas costas, o que me provocou vários ferimentos. Não resistindo, caí, mas o capitão QUINHONES disse que me pusesse de joelhos e um outro indivíduo que entrou, intitulando-se oficial da marinha, agrediu-me mais duas vezes com a cadeira. Após isto o capitão QUINHONES e o furriel DUARTE, um de cada lado, agrediram-me com o cinturão por todo o corpo, e eu, que já sentia dores na coluna, senti dores nas costelas e caí novamente no chão.

O capitão QUINHONES ria-se e dizia que o tenente-coronel LEAL DE ALMEIDA queria que eu falasse, nem que eu ficasse todo partido, e que ele ia mesmo fazer-me falar.

Passados uns momentos, quando me encontrava novamente sentado, e como fizesse tenção de reagir às agressões, algemaram-me e perguntaram-me se eu conhecia uns indivíduos, os quais haviam entrado mais ou menos quando me começaram a agredir com a cadeira de ferro.

Como eu dissesse que conhecia alguns deles e outros não, foram-me dizendo os nomes apontando para eles e enunciaram um COELHO DA SILVA, um doutor MAURÍCIO, que não conhecia, e o JOÃO VAZ, ALVARENGA AUGUSTO FERNANDES (BATICAN) e o ARTUR, todos africanos, os quais já conhecia da Guiné.

Então o capitão QUINHONES ordenou ao tal “JORGE” que pegasse num fio eléctrico e me torturasse, tendo-me este dado choques nos ouvidos, sexo e no nariz. Pela terceira vez que me fizeram isto, desmaiei, pois não aguentei.

Quando recuperei tornaram, o capitão QUINHINES e o furriel DUARTE, tornaram a agredir-me com os cinturões e a cadeira de ferro, sentindo eu nessa altura que devia estar com fractura da coluna e costelas, e tinha vários ferimentos grandes em todo o corpo. Mais uma vez não aguentei e desmaiei.

Ao recuperar os sentidos encontrava-me todo molhado e ensanguentado, não tinha movimentos nas pernas e quase não podia respirar, além de fortes dores em todo o corpo.

Por volta das 6 horas do dia 18 trouxeram para junto de mim e dos outros indivíduos que estavam ali presos e já mencionados, o FERNANDO FIGUEIREDO ROSA, também da Guiné, ao qual agrediram com a cadeira de ferro e arrastaram para fora da sala. Entretanto entrou também uma senhora que dizia sr mulher do COELHO DA SILVA, à qual o furriel apalpou as nádegas e seios e outras partes do corpo, frente ao marido.

Fui algemado logo a seguir à entrada da senhora, e conduzido à prisão, onde um furriel encheu com água a cela, até ao nível dos tornozelos.

Por volta das 23.00 fui retirado da prisão, e vi o tenente fuzileiro CORTE REAL e o ex-tenente fuzileiro FALCÃO LUCAS cá fora, os quais ao ver o meu estado me disseram que a eles também lhes tinham dado um “bom tratamento”, mas não tanto como o meu.

Fui metido, a seguir, numa Chaimite e levado para Caxias, onde cheguei já pelas 01.00 ou 02.00 do dia 19/5/75.

Chegado a Caxias, o capitão tenente [João Eduardo da Costa Xavier] XAVIER, e o qual conhecia da Guiné, tratou-me com termos ordinários e obscenos, e mandou-me levar para uma cela, apesar de ver o estado em que me encontrava e de me ter queixado e afirmado que necessitava ser assistido clinicamente.

Só no dia 21/5/75, e depois de muito insistir com pedidos ao oficial de serviço, aspirante da Marinha, FERNANDES, fui levado à enfermaria de Caxias onde me fizeram os primeiros tratamentos, mas quando era necessário ser radiografado faziam-no sempre às zonas do corpo que não eram aqueles de que me queixava.

Permaneci 150 dias em Caxias, e só quando fui libertado e colocado com residência fixa, consegui ser trado convenientemente, e soube ter tido fractura de duas costelas e da coluna.

Lisboa, 24 de Janeiro de 1976

MARCELINO DA MATA

ALF. COMANDO

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_ De Conakry ao M.D.L.P. ‘dossier secreto’, Alpoim Calvão, INTERVENÇÃO, 1976, pgs 233 a 236

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