António Martinó de Azevedo Coutinho
- III -
Os aplausos renovavam-se em novas investidas, onde os estribilhos patrióticos se sobrepunham.
Perante os gritos de Viva a Itália, Muti virou-se para o público e, tranquilo e seguro, disse: - Sim, estou de acordo com o Viva a Itália, absolutamente!
Seguiu-se nova ovação. E Muti continuou: - Não tenho trinta anos e, como italiano que tem corrido o Mundo, estou muito pesaroso com o que se passa no meu país. Então, aceitei o vosso pedido de bisar o Va pensiero. Não o faço tanto, ou apenas, por razões patrióticas, mas porque esta noite, enquanto o coro cantava Oh minha pátria tão bela e perdida, pensei que, se continuarmos assim, matamos a cultura sobre a qual está assente a História da Itália. Neste caso, verdadeiramente, a nossa pátria estará bela e perdida!
Enorme ovação saudou as declarações do maestro, dela participando os artistas em cena. A emoção colectiva dominante na sala atingira níveis indescritíveis.
Riccardo Muti, depois de o ambiente ter acalmado um pouco, prosseguiu: - Já que reina aqui um clima italiano, verdadeiramente itálico, e que muito frequentemente eu, Muti [mudo], tenho falado aos surdos, e durante tantos anos, queria agora que fizéssemos aqui uma excepção, na nossa própria casa, o teatro da capital, com um coro que cantou magnificamente e com uma orquestra que o acompanhou muitíssimo bem. Proponho pois, se quiserem unir-se a nós, que cantemos todos juntos.
Novo e febril aplauso selou a aliança. Tranquilo, Muti ainda recomendou: - Mas, a tempo, está bem?!
O que se seguiu transformou-se num raro momento de empatia entre todos os presentes na monumental sala romana, traduzido no mais fabuloso coral que alguma vez interpretara a Coro dos Escravos. Quase virando costas ao palco e à orquestra, o maestro dirigiu um espontâneo conjunto de 1.300 espectadores, na plateia e nos camarotes, de pé, cada um deles cantando o que sabia, e como sabia, da ária. Foi novamente o espírito patriótico dos tempos do Rissorgimento que dominou aqueles italianos, numa voz colectiva de protesto e de esperança contra as “ameaças” de um Governo incapaz de entender o valor e o papel da Cultura. Provavelmente, desmentindo os próprios argumentos do maestro, talvez Va Pensiero se tenha transformado, por uma noite única, no autêntico hino nacional italiano!
O final desta excepcional interpretação seria igualmente indescritível se -felizmente!- não tivessem ficado as imagens e os sons a documentá-lo, no registo de emoções mal contidas, unindo espectadores e actores, com todos de pé e em interminável aplauso, soltando-se de muitos olhos algumas furtivas lágrimas, enquanto dos camarotes desciam, voando, inúmeros papéis, onde podiam ser lidas mensagens como: “Viva Giuseppe Verdi”, “Viva o presidente Giorgio Napolitano”, “Viva a Itália”, “Parabéns (tanti auguri) Itália”, “Itália ressurge na defesa da cultura”, “Lírica, identidade unida da Itália no mundo” e, até, “Riccardo Muti, senador vitalício”...
E a memorável exibição de Nabucco seria depois premiada por mais de dez minutos de aplausos, ininterruptos.
Isto aconteceu na capital italiana, num teatro italiano, durante a interpretação de uma ópera italiana dirigida por um maestro italiano, perante uma plateia constituída por italianos. Porém, o mais importante daquilo que intensamente se viveu nessa noite mágica é universal.
Também poderia ter acontecido em Portugal? Duvido...
No entanto, todos temos sofrido urbi et orbe, e de que maneira, o governo nefasto de engenheiros iletrados, incapazes de perceber o papel e o valor da Cultura, não como encargo no Presente mas como investimento para o Futuro, não como favor prestado aos cidadãos mas como resposta aos seus mais elementares direitos.
Oh, patria mia, si bella e perduta...
Entenderão isto, plenamente, os novos governantes de Portugal? Gostaria de acreditar que sim.
Temos imperiosa necessidade e urgência de que nos sejam garantidos o Emprego, a Saúde, a Educação, a Segurança ou a Justiça? Certamente! Mas também a Cultura.
Merece ser recordado o histórico episódio do serão de 12 de Março deste ano, tal como foi vivido no Teatro dell’Opera, em Roma. Aconteceu há uns meses, apenas, quase aqui ao lado. E convém não esquecer a lição cívica que encerra.
Por isso, ela aqui fica, autêntica, quase arrepiante. Do princípio ao fim, durante um quarto de hora, vale a pena ver e ouvir um registo excepcional.
E pedagógico.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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