\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, janeiro 17, 2011

António Martinó de Azevedo Coutinho

O Ramal de Cáceres, neste seu troço em território norte alentejano, tem uma crónica que em muito ultrapassa a do seu inestimável serviço cívico e sócio-económico regional, para se inserir nos domínios da própria cultura nacional.
Referimo-nos, sobretudo, à figura e obra de um engenheiro, João Gonçalves Zarco da Câmara, que ficou conhecido nos anais da literatura por D. João da Câmara.
De origem fidalga, descendente directo do navegador que descobriu a Madeira, nasceu em Lisboa, na Junqueira, em 1852. Estudaria nos Colégios de Campolide e de N.ª S.ª da Conceição, continuando a sua formação em Lovaina, na Bélgica. De regresso a Lisboa, a quando da morte do pai, matriculou-se na Escola Politécnica e depois no Instituto Industrial, onde concluiria o curso de condutor d’obras públicas, assim se denominavam nesse tempo os engenheiros técnicos.
Logo a seguir, conseguiu emprego no caminho-de-ferro e dirigiu a construção de algumas linhas, entre as quais precisamente o Ramal de Cáceres. Mas o engenheiro João da Câmara de há muito caminhava por “carris” paralelos, pois desde os seus tempos do colégio que se dedicava à criação de peças teatrais, paixão partilhada noutros géneros literários, como a poesia, o romance histórico, o jornalismo, a crítica e a crónica.
E foi precisamente a sua estada por estas nossas terras que o inspirou para a construção daquela “outra via” que seria a sua obra-prima: a comédia dramática Os Velhos, estreada no Teatro Nacional D. Maria II em Março de 1893. Embora se deva recordar que o público e a crítica da época não acolheram a obra com grande entusiasmo, os tempos viriam a consagrá-la com o justo merecimento artístico hoje reconhecido.
Os Velhos são uma análise realista das gentes, dos tempos e dos costumes da região que o Ramal atravessa. O seu enredo, onde se misturam traços psicológicos e condutas dramáticas, assenta no retrato de uma zona remota num país atrasado, onde são despoletadas as contradições entre a modernidade (o comboio internacional) e o conservadorismo (a economia assente no contrabando, as tradições rurais, a sociedade patriarcal, as mentalidades fechadas...).
Figuras dotadas de grande densidade cénica, “uma animada galeria de criaturas reais, captadas na diversidade dos seus temperamentos, obsessões e afectos”, como as definiu Luiz Francisco Rebello, dão corpo e alma aos conflitos entre a renovação prometida e a obsessiva dureza da realidade instalada e envolvente.
Alguns estudiosos literários assinalam a dimensão biográfica que ressalta da peça, uma vez que o “engenheiro Júlio”, sua personagem central, encarna o futuro do progresso quase revolucionário que o comboio significava, espécie de maléfica e alheia provocação, no entender dos naturais. Entre estes, a família Patacas mais os outros “velhos” -sobretudo o prior, o mestre-escola e o barbeiro- e o jovem engenheiro, estabelece-se um diálogo de contrastes, progressivamente adoçado pela relação amorosa entre Júlio e Emilinha, a neta de Manuel Patacas, o “velho” patriarca...
O resto -aqui fica o convite-desafio!- que vá cada qual lê-lo no original se não puder ouvi-lo e vê-lo, ao vivo e em directo, numa sempre provável e cíclica representação da peça. Aliás merecem-no a notável qualidade da escrita e o pessoalíssimo estilo do autor, capaz de nos surpreender pelo seu entremear literário de um realismo quase poético e da justa definição de caracteres intemporais e universais, apesar do decurso dos anos e da profunda alteração do contexto histórico e sócio-económico da época e dos lugares.
A obra de D. João da Câmara adquiriu hoje um sentido profético. O seu alter-ego, o “engenheiro Júlio”, tocado pelo amor da bela Emilinha, ganha coragem para o sacrifício supremo de “viver e morrer aqui”, no voluntário abandono de uma carreira que apenas teria expressão nos distantes sítios onde imperava a civilização urbana... (Guardadas as devidas “distâncias”, isto faz-nos lembrar Régio!)
Mas Júlio acredita então que o comboio “há-de acordar os ecos desses campos adormecidos” e tal crença fornece-lhe a força suficiente para viver ali o seu amor. Mais, ele convencerá por fim os seus “adversários” a “ouvir no silvo da locomotiva o hino do progresso.”
Sabemos que foi assim. Beirã e Marvão sentiram-no e de que maneira!
O silêncio a que o comboio ficará doravante votado, por vontade soberana de quem nos (des)governa, soará por isso como uma marcha fúnebre ecoando num prenúncio de morte dos sonhos que mereceríamos...
(... e pouca-terra, pouca-terra, até ao próximo apeadeiro)
António Martinó de Azevedo Coutinho


Este vídeo, o quarto da série original, tem como temática um pouco da história do Ramal de Cáceres. Com pouco mais de sete dezenas de quilómetros, entre Torre das Vargens e Beirã-Marvão, o troço torna-se internacional pela ligação a Arroyo-Malpartida, já na vizinha Espanha. Aqui se recorda o dia 6 de Junho de 1880, data da sua solene inauguração nacional e revela-se um pouco da arte contida nos interessantes painéis de azulejos que decoram as paredes da estação fronteiriça, onde os motivos regionais integram uma pequena colecção nacional.