António Martinó de Azevedo Coutinho
A sério, bem a sério, que não se pense que estou a “piratear” um título célebre, e recente, da autoria do nosso conterrâneo Rui Cardoso Martins. Aliás, confesso que estive mais inclinado por George Simenon, com O Homem que (não) via passar os Comboios... Mas assaltou-me a íntima convicção de que terei usado este título em crónica já perdida no pó dos tempos. Fica portanto assim.
A questão nem sequer é actual, antes se diria que é cíclica. Cada vez mais moribundos no seio dum país em acelerado processo de decomposição, vamos por aqui sobrevivendo, fazendo das tripas coração. Já não tínhamos autoestradas nem sequer esperança delas, agora, pouco a pouco, vamos sendo expoliados das vias férreas.
Aos menos novos lembra-se -neste particular do caminho-de-ferro!- o que foi perdido, apenas no relativo a vilas e cidades deste nosso desgraçado Norte Alentejano. Nos finais do passado século ficámos sem comunicação ferroviária com
Estremoz e com o Sul, pela desactivação do Ramal de Portalegre, e perdemos ligação com Sousel e Fronteira. Agora, com a ameaça pendente sobre o Ramal de Cáceres, chega a vez de Castelo de Vide e Marvão, ficando Lisboa, o Norte e Espanha mais longe. Bem depressa virá o abandono da Linha do Leste, com ou sem TGV (e esta é outra anedótica crónica governamental de contradições, com avanços e recuos, com promessas e ameaças), perdendo-se Ponte de Sor, Crato, Arronches, Elvas e... Portalegre!
Contabilizando, e apenas no que respeita às ligações directas, este esvaziamento de mais um dos raros benefícios colectivos com que tínhamos contado prejudica(rá) claramente nove dos quinze concelhos indígenas... E outros, de forma indirecta.
Pode invocar-se, como dado mera e friamente contabilístico, que a exploração era deficitária. Claro, com o tipo e a qualidade do serviço disponibilizado -horários, segurança, conforto, “velocidade”, preços, etc.- , não poderiam atingir-se melhores resultados. No entanto, nos países civilizados, o comboio é, ainda hoje, um dos mais procurados, eficazes e rentáveis meios colectivos de transporte.
Fixemo-nos no capítulo mais actual desta saga da nossa desgraça regional, precisamente o que se refere ao Ramal de Cáceres. Transcreve-se a tal propósito o parágrafo inicial do artigo alusivo de Marisa Soares, divulgado na edição de há uns domingos, no dia 2 de Janeiro de 2011, no jornal Público:
“A freguesia de Beirã, em Marvão, no Alto Alentejo, é desde sempre ponto de passagem de comboios. Até o brasão da freguesia tem o desenho de uma locomotiva. Beirã nasceu e desenvolveu-se com o comboio, tudo gira à volta da estação, afirma o presidente da Câmara de Marvão, Victor Frutuoso. Há uns tempos, recorda, a Refer levou o mobiliário da estação, sem dizer para onde nem porquê. Agora, com o plano da CP para suprimir o ramal de Marvão a Torres das Vargens, a aldeia vai perder a identidade. Que futuro terá a população e as linhas que a ligam ao resto do país?”
O Ramal de Cáceres não é, apenas, uma simples linha de caminho-de-ferro, embora talvez secundária no contexto nacional. Ele foi, também, o troço de uma ligação directa, segura e funcional, para passageiros e mercadorias, entre as duas capitais ibéricas.
Quanto a este particular, alguns especialistas de inegável mérito e competência, assinalam o facto de, no país vizinho, se investir numa aposta rigorosamente inversa, isto é, na modernização de linhas com as mesmas características daquelas que entre nós vão ser encerradas. E, segundo tais autoridades técnicas, com ganhos operacionais elevadíssimos!
Mas os nossos “iluminados” políticos e os seus “competentes” assessores oficiais, mais os seus dilectos banqueiros de estimação e os seus dignos gestores das empresas públicas, na incontornável senda de originalidade que caracteriza essa classe, devem ainda pensar que, de Espanha, nem bom vento nem bom casamento...
(... e pouca-terra, pouca-terra, até ao próximo apeadeiro)
António Martinó de Azevedo Coutinho
Um interessante conjunto de seis curtos vídeos, criados em 2008 e disponíveis no YouTube, resultou de uma parceria entre o GAFNA e a Junta de Freguesia da Beirã. O tema central deste conjunto é precisamente o Ramal de Cáceres. O primeiro da série é dedicado à própria localidade e à sua história, quase paralela à contrução da ferrovia. Por ele podemos perceber o nascimento e o progresso da Beirã e também como a legitimidade desta luta deriva do direito à sua digna sobrevivência, agora posta em causa.
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