\ A VOZ PORTALEGRENSE: História Natural da Destruição

quinta-feira, dezembro 30, 2010

História Natural da Destruição

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O SILÊNCIO QUE POUSOU NAS RUÍNAS
No final do Outono de 1997, quatro anos antes da morte num estúpido acidente de automóvel, W. G. Sebald proferiu em Zurique duas conferências sobre Guerra Aérea e Literatura, nas quais analisou os escassos reflexos da devastadora campanha aliada de bombardeamento da Alemanha nazi, desencadeada entre 1942 e 1945, nos romances germânicos do pós-guerra. Previsivelmente, ao abordar temas que foram, durante muito tempo, tabus na sociedade alemã (por exemplo, a forma como uma espécie de amnésia colectiva permitiu a sobrevivência aos traumas da derrota militar e ao peso da culpa pelos horrores do III Reich, abrindo caminho a um recomeço da estaca zero), Sebald expôs-se à polémica com outros académicos e às catilinárias dos leitores, alguns dos quais lhe enviaram vasta correspondência e elaboradas refutações das suas ideias. Em História Natural da Destruição, ensaio póstumo editado em 2003, reúnem-se tanto as “lições de Zurique” propriamente ditas como a resposta às reacções que elas provocaram.
«Apesar dos denodados esforços para vencer o passado, quer-me parecer que os Alemães são hoje um povo nitidamente cego para a história e falho de tradição», escreve Sebald, para logo depois acrescentar: «quando olhamos para trás, em particular para os anos de 1930 a 1950, é sempre com um olhar que ao mesmo tempo se foca e se desvia». Este desvio, esta incapacidade de fixar o que se passou nos últimos anos da guerra, sobretudo por parte dos escritores que tinham o dever do testemunho a posteriori, é o fulcro da perplexidade de Sebald e o mote para a investigação sobre o silêncio que pousou, em 1945, nas ruínas de um país reduzido a cinzas.
Antes de esmiuçar o modo como os escritores alemães omitiram, ou narraram apenas de forma incompleta, a imensa catástrofe humana sofrida pelas populações, o autor de Os Emigrantes leva a cabo um levantamento da “acção destruidora sem precedentes” que os aliados infligiram, pelos ares, a partir de Inglaterra: um milhão de toneladas de bombas sobre 131 cidades; 600.000 civis mortos; sete milhões e meio de desalojados. Guerra é guerra, dirão muitos, ignorando talvez que a estratégia de area bombing, defendida por Sir Arthur Harris, continuou a ser aplicada mesmo quando já não era eficaz, apenas porque a “máquina” (que absorveu um terço de toda a produção britânica de material de guerra) não podia parar.
A partir de relatos dispersos, Sebald descreve com minúcia a tempestade de fogo que se abateu sobre Hamburgo, os corpos calcinados, o desmoronar da ordem social, a invasão das ratazanas e as torrentes de pessoas que se espalharam pelo resto do país, em estado catatónico, incapazes de verbalizar o horror absoluto da sua experiência, num prenúncio dessa espécie de “acordo tácito” segundo o qual “era impossível descrever o verdadeiro estado de aniquilamento material e moral em que se encontrava todo o país”. Este interdito estendeu-se, paradoxalmente, aos escritores. E se uns apenas publicaram a sua visão daqueles dias negros décadas mais tarde (caso de Heinrich Böll), outros fizeram-no no pós-guerra (Herman Kasack, Hans Erich Nossack, Arno Schmidt ou Peter de Mendelssohn) mas de forma discutível, porque incapazes de captar a realidade crua da tragédia alemã, sem filtros estéticos, alusões abstractas ou filosofismos serôdios. É esta pelo menos a opinião de Sebald, que analisa no seu estilo compacto (de enormes parágrafos e longas frases muitíssimo bem articuladas) as várias obras destes escritores e a evidência do seu falhanço.
Além do posfácio, réplica em tom pessoal aos ataques desferidos às teses das “Lições”, o volume inclui ainda três ensaios (sobre Alfred Andersch, Jean Améry e Peter Weiss), interessantes mas algo descentrados do tema deste livro corajoso.
[Texto publicado no dia 7 de Abril de 2006, no suplemento do Diário de Notícias]
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Mário Casa Nova Martins