António Martinó de Azevedo Coutinho
A primeira manifestação do fenómeno publicitário ligado aos quadradinhos encontrei-a pelos tempos mágicos dos finais da década de 30, inicíos dos anos 40, do passado século. Foi mais ou menos na época em que me encontrei, para sempre, com Tintin.
O suporte era outro, no entanto da mesmíssima família d’O Papagaio: o ABC-Zinho, suplemento infantil da ABC, uma das mais influentes revistas nacionais do passado século. Exemplares soltos -muitos exemplares de dois distintos formatos- povoavam o meu próprio lar. Guardo ainda o que deles restou, sobretudo páginas soltas, algumas revistas cuidadosamente recuperadas, testemunhos de tempos descuidados, onde nós, os gaiatos dessa época, nem sequer entenderíamos plenamente o alcance e as intenções de alguns conteúdos para além das histórias mais óbvias.
O ABC-Zinho foi uma notável publicação que reuniu um elenco de colaboradores literários e gráficos de invulgar qualidade, publicada em duas séries, a primeira entre 1921 e 1926, e a segunda de 1926 a 1932. Ligada a um grupo editorial organizado, decorreu com naturalidade a participação de publicidade no seu conteúdo. Um exemplo muito interessante, subscrito pelo génio de Cottinelli Telmo (1987-1948), conceituado arquitecto e autor de banda desenhada, consistiu na regular publicação de páginas dedicadas à promoção dos chocolates da marca S.I.C., situando as sucessivas cenas num enquadramento “histórico” ligado aos tempos pioneiros da nossa monarquia.
Cottinelli Telmo, que criou para os quadradinhos nacionais o nosso primeiro “herói” com alguma consistência -o Pirilau-, detinha um traço muito pessoal, deixando-nos uma interessante série de cartoons que constitui um belo exemplo das primeiras experiências ligando a publicidade à BD, entre nós. Estão no ABC-Zinho, entre 1921 e 1922.
Fora das páginas especificamente dedicadas à 9.ª Arte, serão dos tempos imediatos, talvez pelos anos 40, os dois exemplos seguintes.
Um folheto com quadradinhos desenhados, e singelas quadras como legendas, é dedicado à proclamação das virtudes do Mitigal, um produto da multinacional farmacêutica Bayer que tira rapidamente a comichão, sendo indicado na sarna e em todas as doenças parasitárias da pele. Anúncios similares são conhecidos um pouco por todo o mundo, e não apenas na imprensa, também em spots publicitários na rádio. O folheto português foi impresso nas Indústrias Gráficas, no Regueirão dos Anjos, 68, em Lisboa.
Embora desprovida de signos cinéticos, onomatopeias, balões, metáforas visualizadas e outros elementos da linguagem da BD que ali poderiam ter lógico lugar, não deixa de conter elementos essenciais dos quadradinhos, como a sucessão cinética e narrativa das imagens, bem patente na tira inferior, com o paciente entregue aos cuidados do curandeiro de feira...
O outro exemplo consiste num singelo desdobrável onde se destacam as virtudes da Ovomaltine fria, como a bebida ideal de Verão. Originalmente suiço, o produto é hoje dominado por uma multinacional inglesa que, por curiosa coincidência, fornece Ovomaltine à cadeia McDonald’s desde 2009, para confecção da sua linha de sorvetes...
As duas juvenis personagens protagonizam uma curta sequência traduzida numa banda desenhada, curta e elementarmente funcional, desta feita com balões e signos cinéticos, embora estes parcimoniosamente apenas usados na “forte agitação” da mistura. Dispensável, a numeração das vinhetas...
Dessa primeira metade do nosso século XX, aqui ficam estes três casos soltos, reveladores de como, em tempos ainda ingénuos quando confrontados com os de hoje, já a BD se prestava, em diversos níveis de participação (enunciados no texto inicial), a uma função de cariz publicitário.
Passemos à segunda metade...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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