\ A VOZ PORTALEGRENSE: João Caraça

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

João Caraça

Não pensemos que é na reforma das instituições europeias que está a solução. É na sua refundação

A Perestroika americana

João Caraça

O velho ditado “o pior cego é aquele que não quer ver” continua válido. Não quisemos ver. Foi preciso toda esta intoxicação que nos trouxe a presente crise para começarmos a compreender.
O capitalismo do século XX construiu-se tendo como figura central a grande empresa industrial, verticalmente hierarquizada e integrada. Duas poderosas organizações territoriais imperiais constituíram-se seguindo este modelo: a soviética, a partir da revolução de 1917 (sob a forma de um capitalismo de Estado), e a norte-americana, com o impulso e os programas do New Deal após a depressão de 1929-1933 (desenvolvendo-se como uma economia capitalista de mercado). Foi o esgotamento da dinâmica da sociedade industrial, com as crises do petróleo e as novas tecnologias da informação, que naturalmente provocou a implosão de ambas - por incapacidade de antecipação por parte das respectivas elites dirigentes, que promoveram perestroikas em vez de verdadeiras refundações.
Os dois impérios duraram o mesmo tempo: 75 anos, o intervalo de três gerações (1917-1991 para a URSS; 1933-2008 para os EUA na sua fase imperial) e terminaram de modo semelhante - contracção da produção e crise financeira. Apenas mudaram as circunstâncias. O intervalo de três gerações corresponde a um período recorrente na história das organizações. Essas três gerações têm características e funções diferentes - a primeira, dos fundadores ou dos conquistadores; a segunda, dos seguidores ou dos continuadores; a terceira, dos reformadores ou dos dissipadores. Esta última geração é a que tem a função mais ingrata, pois, não tendo tido contacto físico directo com os comportamentos e a ética das origens fundacionais (ao contrário das outras duas), procura na reformulação dos princípios e na reforma das instituições a manutenção dos privilégios de aquisição da riqueza.
Perto do final do período imperial, consoante o estado e o peso das forças exteriores ao império, assim se assiste à sua refundação ou à sua implosão. Nós, ocidentais, vimos a perestroika soviética como o estertor do velho urso moribundo. E não quisemos ver na “globalização das finanças”, na “deslocalizaçâo”, na “inovação aberta” e na “gestão do conhecimento” o tombo abissal da águia cansada de bater as asas. Embarcámos na propaganda. Quisemos ver nos casos de sucesso da perestroika americana a liderança da transformação dos anos 1990 e do século XXI. Quando eles apenas ocultavam a enorme ineficiência e desperdício da economia do centro do império. Que levou o endividamento total (público mais privado) da nação americana ao extraordinário valor de 330% do respectivo PIB! É que era preciso um consumo galopante para alimentar a máquina e, por isso expandiu-se o crédito como nunca se viu; ora, não havendo poupança interna, alguém teria de poupar para os americanos poderem investir. Foi-se buscar a poupança naturalmente aos domínios do império e mesmo à sua periferia, graças à perestroika nas finanças: os países da Europa, da América Latina, a China e outras dependências asiáticas contribuíram assim para o peditório - iludidas como o “génio”, o “conhecimento” e a “audiência” dos financeiros imperiais durante os reinados dos Presidentes Bush, Clinton e Bush. Como velhos aliados, só podemos desejar boa sorte ao Presidente Obama.
Mas uma grande oportunidade abriu-se também para a Europa. E que é preciso saber aproveitar. Não pensamos, porém, que é na reforma das instituições europeias que está a solução. É, antes, na sua refundação. É no estímulo à criação de novas organizações que saibam inovar de forma sustentada nesta sociedade em rede, que vai enxameando o globo, que devemos centrar a nossa capacidade colectiva. O que restar do passado desaparecerá sem glória na voragem dos anos 2020. É bom que o antecipemos para que essa eliminação seja mais tranquila do que violenta.
Professor universitário. Director do serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian
in, 34 . Público . Sábado 21 Fevereiro 2009