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sábado, março 03, 2007

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PROTO-HISTÓRIA DA GUERRA DE ESPANHA
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por RODRIGO EMÍLIO
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Ainda a República espanhola é uma criança de colo de menos de um ano, e já o país - como que violentado historicamente com a implantação do novo regime - começa o que se chama a dar de si, e a entrar em grave estado de deterioração. A pusilanimidade do governo face aos desmandos diários de anarquistas, socialistas e comunistas, que impunemente assaltam, profanam, matam, pilham, incendeiam, e supliciam à rédea solta; o sectarismo do mesmo governo em relação às direitas nacionalistas, cujos dirigentes e militantes se vêem passeados de prisão em prisão e sistematicamente inculpados pelo que - fazem e não fazem, - são factos que, em parte, explicam o quadro de cisões incontroláveis que a Espanha apresenta nos primeiros anos da década de 30, e diante do qual as entidades governamentais (um tanto impotentemente, outro tanto intencionalmente) cerram os olhos. A iniquidade quase adquire, assim, força de lei e os favoritismos e arbitrariedades constituem a base de todo o exército governativo. O governo não é mais senhor da situação caótica a que chegou vertiginosamente a coisa pública, e deixa de ter mão em quem quer que seja, ainda mesmo naqueles que mais de perto, e mais decisivamente, concorreram para a proclamação da República - e que, com mágoa, agora se dão conta dos homens que, afinal, conduziram ao poder.
É em 1932 que tudo começa a ganhar extrema acuidade: mais precisamente, a partir do momento em que o presidente Azaña faz votar uma lei agrária que expropria os chamados «grandes de Espanha» de vastos domínios de terras. Era, em princípio, uma medida a tomar, já que visava um maior equilíbrio distributivo de bens. Simplesmente, foi aplicada mais com espírito de ódio que com espírito de justiça, e imposta mais corno um vexame que como sacrifício necessário.
Não foi menos desastrosa a actuação do governo quando se tratou de legislar sobre a Igreja. E bem pode mesmo dizer-se que a República assinou, até certo ponto, a sua condenação, e ficou, praticamente, com os seus dias contados, desde o instante em que, no articulado constitucional, foram consagradas disposições declaradamente anti-clericais, tais como, entre outras: a abolição dos direitos, deferências e regalias especiais a que tinha jus a classe sacerdotal; o cancelamento de todas as prerrogativas que lhe eram devidas; a dissolução de um sem-número de ordens religiosas e, designadamente, da Companhia de Jesus; a laicização do ensino; a legalização do divórcio.
Ora, a verdade é que a nação espanhola, entranhadamente católica como sempre foi, não viu nada disto com bons olhos; e muito menos, quando a caça às sotainas e aos hábitos, e a devastação sacrílega de igrejas e conventos, começaram a ser prática corrente. Para se fazer uma pequena ideia das enormidades então cometidas, bastará dizer que, em menos de três meses, foram teatro das maiores sevícias e pasto de chamas criminosas, literalmente saqueados e reduzidos a escombros fumegantes, 124 templos católicos. Entretanto, também o Exército ia sendo alvo da crescente hostilidade do governo, que procedia ao desmembramento e depuração dos quadros de comando mediante a aplicação de penas disciplinares, mais ou menos injuriosas, ou a poder de transferências, despromoções e destituições em série, irradiações e passagens à reserva. Casos houve, até, em que chegou a decretar-se a extinção ou o deslocamento do efectivo de guarnições inteiras. E todo o antigo combatente que apresentasse indícios de referenciação política, era automaticamente privado de pensionato.
Ao cabo de dois anos no poder, a República anti-clerical e franco-maçónica de Manuel Azaña concita decepções em todas as camadas da nação, e chega a ser alvo de uma conjura militar, intentona dirigida pelo general Sanjurjo, que se cobrira de glória em Marrocos, durante as campanhas de pacificação do Protectorado. O golpe malogra-se e, gorado ele, Sanjurjo vê-se inicialmente sentenciado à morte; a pena capital acaba, todavia, por lhe ser comutada, e o general ganha então o caminho do exílio, acolhendo-se a Portugal. E é quando o xadrez nacionalista verdadeiramente começa a desenhar, em bases organizadas, a sua jogada, com os olhos postos na acção, e a adquirir fisionomia consistente no concerto político interno. Provendo à consolidação das suas estruturas de combate, as direitas em peso tratam, então, de fundir em denominador comum, todo um leque de formações partidárias, matizado nas ideias mas convergente nos propósitos e solidário nas intenções. Daí resulta uma frente unida, que aglutina e abarca, a par dos agrupamentos políticos tradicionais (como sejam, a facção carlista, os monárquicos de Calvo Sotelo e o chamado «partido agrário», que exprime as aspirações dos grandes proprietários do sul), outros grupos, de substractum assaz inovador, menos circunscritos quanto à ortodoxia ideológica: por isso mesmo, de mais dilatada amplitude, e susceptíveis, assim, de atraírem a adesão das camadas vacilantes da população; muito principalmente, daqueles sectores que, postulando embora a restauração da ordem, e conquanto afectos à tradição, estavam longe de advogar o readvento da realeza. Dois partidos, pelo menos, respondiam a essas aspirações: a Confederacion Espanola de Derechas Autónomas (CEDA), católica mas não monárquica, da direita sem ser reaccionária, liderada por Gil Robles; e a Falange, de padrão fascista, fundada por José António Primo de Rivera, filho do ditador monárquico dos anos vinte.
No decurso das eleições parlamentares de 1933, já a CEDA avulta como força política de primeira grandeza: os partidos do centro-direita e das direitas recolhem a maioria dos votos, assegurando assim predomínio de lugares nas Cortes. Por seu turno, o governo surto do escrutínio é formado, essencialmente, por homens do centro, e presidido por um radical, Alejandro Lerroux, que, na circunstância, se vê compelido a governar com o apoio das direitas, às quais faz concessões sobre concessões. Ora, se a República de Azana exasperara católicos e conservadores, a de Lerroux vai ter o condão de encolerizar os movimentos operários. E, no ano seguinte, as coisas complicam-se e agravam-se irreparavelmente: volta a pôr-se à Espanha o bicudo problema dos separatismos regionais, fenómenos desde logo apadrinhado e sabiamente explorado pêlos agitadores socialistas. De um dia para o outro, deflagram em diversas províncias (e, nomeadamente, na Catalunha e nas Astúrias) amotinações e tumultos de sinal emancipalista, claramente enquadrados e fomentados pêlos vermelhos. Chamado a deter a marcha da revolta catalã, Alejandro Lerroux vê-se na impopular contingência de meter na ordem os manifestante e nas prisões da República os cabecilhas, o que lhe vale, como está bem de ver, o rancor do proletariado revolucionário em peso. Diante do levantamento dos mineiros asturianos, cuja insurreição foi acompanhada de inenarráveis atrocidades e de indescritível sangueira, o governo houve-se também da pior maneira: de facto, mal o Exército e a Legião Estrangeira deram por concluídas as campanhas de repressão, e a pacificação se consumou, que faz Lerorux? Muito simplesmente, manda passar pela armas os mineiros e agracia os orientadores da sublevação. E sobrevêm as eleições de Fevereiro de 1936. A contagem resulta favorável à Frente Popular, cujos candidatos arrecadam o número bastante de votos para terem assegurada a supremacia nas Cortes, se bem que por margem muito escassa.
Para os conservadores, que tão esperançados se mostravam em chegar ao poder pelas vias legais, é a consternação total. Assim, quase não surpreende que venham a assumir, perante o veredicto eleitoral, uma atitude categórica de não-acatamento, o que quer dizer que o golpe de estado é inevitável e está iminente.
De resto, o desfecho das jornadas eleitorais só por si evidencia já, de forma concludente, o fosso profundo que, entretanto, se cavara no país, dividindo política e socialmente a Espanha em dois blocos maioritários irredutíveis: de um lado, a Frente Popular, abrangendo todos os partidos da esquerda; do outro, a Frente Nacional, poderosa coligação das direitas. Quer isto dizer que, cinco meses antes de eclodir a guerra civil, os antagonistas estão já em campo, e a postos. Passa a haver dentro da Espanha duas Espanhas irreconciliáveis, que se digladiam sem tréguas, extremando desde logo posições em bases abertamente fratricidas. Doravante, não haverá um só dia em que as hostes da revolução e as da reacção se não defrontem, em termos de indizível violência. Uma vaga de greves, actos incendiários, agressões, atentados, assaltos à mão armada e assassinatos, assola a nação. Numa espécie de desequilíbrio estável, o governo preside ao pandemónio. A valsa dos ministérios marca o compasso do descalabro. Ainda assim, não falta, nos meios oficiais, quem com isto vivamente se congratule e quem a isto dê, de viva voz, o seu ámen. No seio do aparelho parlamentar, por exemplo, com frequência são enaltecidas as propriedades profilácticas do fogo-posto e do crime sem peias. Chega a haver por 1á quem inflamadamente advogue a necessidade de atear «chamas tão gigantescas que se vejam de todo o planeta», e quem, ao mesmo tempo, reivindique a urgência de pôr a correr «ondas de sangue tais, que tinjam de vermelho todos os mares.» Não deixaremos pedra sobre pedra desta Espanha que devemos destruir par edificar a mossa, proclama-se, à boca pequena, no Parlamento. E não falta muito quem por lá instigue e exorte ao terrorismo, apostrofando: «Jovens bárbaros de hoje, saqueai a civilização decadente e miserável deste país sem ventura; destruí os seus templos, acabai com os seus deuses, levantai o véu das noviças e elevai-as à categoria de mães que virilizem a espécie; penetrai nos registos de propriedade e fazei fogueiras com os seus papéis, para que o fogo purifique a infame organização social...»
Entretanto, o Exército - que há mais de um século não é chamado a responder pela segurança exterior da pátria - tenta, consagrar-se à tarefa de rechaçar o inimigo interno, a fim de restabelecer a disciplina no conturbado território. Ingloriamente, porém - já que os sucessivos governos (como atrás ficou dito), fortemente pressionados pelas forças da subversão, tratam de neutralizar, com clamorosa iniquidade de processos, a homogeneidade e coesão do corpo militar. E chega-se a ponto em que a insurreição constitui, para os defensores da ordem, o mais sagrado dos deveres. Assim o entende toda uma valorosa plêiade de oficiais-generais. Historicamente, o primeiro apologeta da conspiração, e seu primeiro animador - é o general Francisco Franco, estratego extraordinário com provas dadas em Marrocos. Sobre ele recaem, contudo, algumas suspeitas, e as autoridades republicanas não estão mais com meias-medidas: destacam-no, a grande velocidade, para as Canárias. Sanjurjo, também ele afecto ao «complot», continua proscrito em Lisboa (e encontrará a morte, num desastre de avião, precisamente quando de Burgos o chamavam para assumir a chefia suprema do «movimento»). O único que se mantém em Espanha é o general Mola, a quem fica cometida a melindrosa missão de orientar a conjura resgatadora. Mola desempenha-se da tarefa meticulosamente, montando, a pouco e pouco, uma rede de ligações e entendimentos, civis e militares, positivamente inextricável.
A 13 de Julho, é identificado na morgue o corpo de Calvo Sotelo, conceituado líder monárquico. Está-se diante de um hediondo crime de morte, particularmente denso de consequências. O assassínio de Sotelo precipitará o curso dos acontecimentos: desde logo fica assente que o pronunciamento nacionalista rebentará «el 17 a las 17». E assim vem a ser: «el 17 a las 17» a revolução armada deflagra em Marrocos; e, algumas horas volvidas, é secundada no continente.
A 18 de Julho, a Espanha inteira vive, expectante, a sua grande velada d'armas; e o 18 de Julho há-de ficar a ser o marco temporal, por excelência, da arrancada remissora que Franco acaudilhará, imparavelmente, até à vitória.
Ao cabo de três anos de trágica grandeza, a pátria espanhola recobrará, enfim, o seu glorioso destino de nação «una, grande y libre».
E de entre escombros, ressurgirá então, exangue mas desperta, a imagem restituta da Espanha eterna.
in, POLÍTICA
II SÉRIE: N.ºs 20-21 – 15 de Agosto a 15 de Setembro de 1973
página 14, página 16 e página 17