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sábado, março 03, 2007

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A PROPÓSITO DE «A PROTO-HISTÓRIA DA GUERRA DE ESPANHA»
Réplica a José Miguel Júdice
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Meu caro José Miguel Júdice:
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Só mesmo o José Miguel — a quem me ligam estreitos lagos de camaradagem ideológica, e até de sangue, para já não falar do apreço intelectual em que o tenho — me determinaria a alinhar este dialogal acerto de razões por carta aberta. De contrário, declinaria a solicitação; e decliná-la-ia, porque sempre me repugnou afinar por figurinos de expressão, que eu reputo apanágio das esquerdas, e mormente das esquerdas tecnocráticas, que deles se apossaram em primeira mão, fazendo jus, ao seu exclusivo. Cartas abertas (ou entreabertas), mesas-redondas —, mais — ou — menos redundantes, colóquios-em-círculo-vicioso-e-viciado, são exteriorizações que se prendem com um mundanismo bem-pensante, de patente, ou matriz, eminentemente esquerdista. Ora eu — até utilizar aqui uma expressão felicíssima do José Rebordão — não quero ser apanhado a copiar as esquerdas, absolutamente em nada. O José Miguel veja nisto um fenómeno de rejeição, e nada mais. De resto, não atino porque razão havemos de andar permanentemente a reboque do que fazem (ou não fazem) as esquerdas!. . .
Movido por uma boa-fé invulgarmente sadia nos dias que correm, e por uma transparência de espírito, cujo grau de candura chega a meter-me inveja, o meu bom amigo, logo no dealbar da carta, trata de basear — em termos que pedem exorcismo mediato — a necessidade, e até mesmo a importância, de também nós, nacionais-revolucionários, nos passarmos a entender em muita coisa, através de diálogo-por-carta-aberta. Diz, textualmente, o José Miguel: «...escrevo porque não tenho dúvidas sobre as vantagens de nos debruçarmos criticamente sobre os textos de pessoas com as quais ideologicamente temos muitos pontos de contacto». E, logo a seguir, adita, ao modo de quem brande argumento edificante, de proveito e bom exemplo: «A intelectualidade marxista nisso — como em muitas outras coisas — até aí a revelar bem a importância do diálogo — que exige uma plataforma comum.»
Ora bem. As dúvidas que o José Miguel não tem (sobre a vantagem de nos entregarmos a exercícios-de-cotejo–crítico-à-moda-dos-marxistas) tenho-as eu. Ou por outra: as dúvidas que tenho, valem por certezas, quanto à inanidade das receitas aviadas ao balcão da fancaria intelectual do comunismo (e não só!) Decididamente, não me está na massa do sangue aceitar, e acatar, como decisiva, imprescindível ou palpitante, a ideia de navegar nas mesmas turvas águas da tripulação marxista!... Porque não se iluda, meu caro: razões há — e muitíssimo corticais — para que todo o intelectual da esquerda goste assim tanto de chegar à fala, por via de tudo e de nada, com os seus correligionários. Creia-me: não é lá pelo desejo exemplar de funcionarem, ideologicamente, uns com os outros, no mesmo comprimento de onda: por outras palavras, não é com o louvável desígnio de afeiçoarem entre si pequenos pontos de discordância, e de catarem a doutrina até ao último pormenor — que os marxistas se avistam por escrito com tanta frequência. O caso é bem outro. Suas excelências pelam-se, muito simplesmente, por fazer grand état de ses connaissances, a pretexto disto ou daquilo. Como diria o Pessoa, concita-os a necessidade de serem inteligentes para entre a família. E, para o efeito, tudo Ihes serve. É esta a verdadeira motivação das manifestações dialogais a que temos tido ensejo de assistir. E o que já hoje mais há por aí (— Viva a carta-aberta!), é quem vá tirando cursos de formação ideológica por correspondência!...
Em face do que fica exposto, já se deixa ver que é, pois, com inteira relutância, que eu me presto a tomar parte neste jogo epistolar, a que o José Miguel me desafiou. Mas, por vir de quem vem, não rejeito o convite. Aceito o repto. E aqui me tem, a responder-lhe. Será uma vez sem exemplo. Mas, desde já na certeza de que é perfeitamente inglório estarmos para aqui a dar tinta à prosa (ou a dar prosa à tinta), com o fito de chegarmos a um acordo total. Sobre isto, não tenho veleidades, e lavro, já de caminho, uma moção de desconfiança quanto ao êxito desta operação de permuta de ideias administradas por via polémica. Porque bem vê: ao cabo desta amistosa confrontação por escrito, é certo e sabido que o José Miguel teimara na sua, e eu porfiarei na minha, e que esta nossa incursão, aos meandros da guerra de Espanha, não nos conduzirá, praticamente, a nada. Mais valia dialogarmos de viva voz; até do ponto em que o seu estudo introdutório à Antologia do José António, sendo trabalho que eu reputo notável a muitos títulos, também ele ficou a merecer-me algumas reservas e reparos, que pessoalmente gostaria de precisar. Mas cara a cara. Frente a frente, e sem exibicionismos de caneta pública...
De resto, devo dizer-lhe que as objecções que o meu artigo suscitou no seu espírito (e à sua pena), me parecem de uma fragilidade, tudo quanto há de mais facilmente rebatível. E isto, porque a sua carta — toda a sua carta José Miguel — enferma de um erro de perspectiva, de todo o tamanho! O meu bom amigo — tomado, decerto, pela necessidade catártica de se libertar da aversão que tem a Franco — perdeu inteiramente de vista, qual o objecto do meu artigo. Por isso mesmo, sinto-me na obrigação de Ihe lembrar que o texto (e, para tanto, basta ter presente o título que eu Ihe pus) se reporta apenas à «Proto-História da Guerra de Espanha», e não, nunca, jamais à «História da Guerra» ou «Do Após-Guerra» ou :«Do Franquismo» tão-pouco. Quero com isto dizer que, ao escrever o que escrevi, tive em mente, única e exclusivamente, os factos ou fenómenos ocorridos até 18 de Julho de 1936, e com directa implicação no concerto da guerra, propriamente dita. Agora, lá se o franquismo foi ou não foi, tem ou não tem sido, uma traição aos princípios, como o José Miguel pretende, é questão que extravasa do âmbito do meu articulado, parecendo-me fora de todo o propósito a sua formulação, uma vez que nunca isso esteve em causa no texto visado, desde o primeiro ao último período. Demais a mais, acontece que também eu não morro propriamente de amores por Franco, enquanto estadista. Venero-o, isso sim, como militar; e não me cansarei de enaltecer e glorificar a sua espantosa acção de cabo-de-guerra, no que não sou sequer original, dado que mesmo os mais sectários dos seus inimigos (a começar por Indalécio Prieto) Ihe tributaram, como tal, rasgadíssimo elogio.
Só que o José Miguel — volto a dizê-lo — esqueceu de todo que o meu texto, antes de mais e depois de tudo, é uma proto-história, e mais precisamente, a proto-história de uma guerra.
Daí que tanto o tenha escandalizado a esquematização a que eu procedi e por meio da qual mais não fiz, afinal, que definir e demarcar as (duas grandes) partes em presença, extremando campos que a guerra, ao depois, se encarregaria de extremar com divisionária nitidez, separando o trigo (ou Frente Nacional) do joio (ou Frente Popular), apartados cada um para seu lado, com prevalência do todo sobre as partes ideológicas componentes.
Ora, quando eu digo que «as direitas em peso tratam (...) de fundir, em denominador comum, todo um leque de formações partidárias» (em que cabem os Falangistas das Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalista, os Carlistas da Comunhão Tradicionalista Espanhola e os militantes da Renovación Espanola e da Acción Popular Católica, etc.), é só em função da conjuntura da guerra que eu tal coisa afirmo. Pois não é verdade que a Falange, logo desde as primeiras horas, e mesmo antes, deu o seu aval ao Alzamiento? Ou acha o José Miguel que, aos falangistas, era inteiramente indiferente a sorte, ou o desfecho, da luta que se adivinhava iminente?!... E a ser assim, como se entende que Franco, antes de seguir para Santa Cruz de Tenerife, se tivesse avistado, pessoalmente com José António, e que este tenha indicado, desde logo, ao General, os elementos falangistas com os quais a U.M.E. («União Militar Española,») podia contar, tanto em Madrid como nas províncias?... E como se compreende, então, que já em Março de 1936 (em Março, veja você...) o tenente-coronel Segui, do Estado-Maior, e os grupos falangistas de Melilla, tivessem contactado entre si, a fim de assentarem ideias quanto à forma de melhor contrabaterem pelas armas o crescente perigo marxista? E não foi, por sinal, esse mesmo Segui, quem, mais tarde, mandou armar inúmeros quadros falangistas?... Mais: como explica o José Miguel que falangistas, requétés, monárquicos de Calvo Sotelo, juventudes da C. E. D. A. e da R. E., etc., tenham combatido e morrido, do mesmo lado da barricada, em Valladolid, Málaga, Sevilha, Saragoça, Oviedo, Gijon, Barcelona, Toledo, Madrid (mormente em Somossierra), etc., e até, inclusive, no próprio protectorardo marroquino?!...
Assim, pergunto: em que se baseia o meu caro contraditor, quando (palavras suas) considera «nula, a actuação unitária» entre Falange e Carlistas? Por mim, creio que o espírito de corpo, que uns e outros revelaram no contexto da guerra-guerra, chega e sobra para desmentir, categoricamente, as observações em contrário, que o José Miguel me dirigiu. E quem diz Falange e Carlistas, diz Falange e agrários, Falange e C. E. D. A., Falange e monárquicos de Calvo Sotelo: até porque Sotelo — o José Miguel deve saber isso tão bem como eu, embora pareça apostado em ignorá-lo —, a breve trecho, foi designado e aceite, não como sendo, meramente, o chefe de um dado alinhamento político, mas como o próprio líder civil da sublevação que se gizava, da mesma forma que a Sanjurjo estava cometido o papel de seu líder militar.
Diferenças ideológicas mais ou menos acentuadas, é certo que as havia, entre todas as facções do bloco nacionalista; e sou eu o primeiro a reconhecer isso mesmo, quando, no meu artigo, as caracterizo uma a uma, e sobretudo, quando por lá aludo (palavras textuais) a «um leque de formações partidárias, matizado nas ideias» (repito: matizado nas ideias), «mas convergente nos propósitos» nos propósitos imediatos, bem entendido, e não só — «e solidário nas intenções» — intenções imediatas, também, e não só...
Ora, o José Miguel, ao negar que propósitos e intenções fossem comuns, está cerrando os olhos à realidade dos factos, os quais nos dizem que, no âmbito do conflito, todas as diferenciações ideológicas se esbateram e todos os antagonismos de ideário foram postos de parte, diante de um inimigo comum que importava conjurar prontamente e rechassar sem comiseração. Logo que tocou a reunir, deu-se a aglutinação conjugada das direitas numa Frente Nacional. E se insisto na adopção desta expressão, que o José Miguel reputou inadequada, e porque, sinceramente, a acho ajustada à circunstância histórica em apreço. (De resto, tanto Brasillach e Bardèche, como Gaxotte e Domminique, foram unânimes neste ponto. E eu tenho a pecha de me orientar pelos autores que amo...)
Ainda em abono do seu ponto de vista, faz notar o meu bom amigo «que a Falange se apresentou às eleições solitária, não aderindo à Frente anti-revolucionária». É certo que sim. Mas do que não há dúvida também, é de que a Falange não observou semelhante procedimento, quando se tratou de combater os rojos pelas armas. E, longe de se quedar à margem da confrontação, irmanou-se, como já vimos, ao Exército, e fez corpo de guerra com os partidos já mencionados.
Porque, uma coisa é velar, e zelar, pela pureza teórica do Nacional-Sindicalismo, à luz do após-guerra e do franquismo; outra coisa, é entrever, fixar e analisar a posição da Falange, na moldura da guerra.
Por último, insurge-se o José Miguel contra o teor do parágrafo final do meu texto, levando a mal que aí se celebre a vitória franquista, em termos de algum modo prospectivos. Isso não significa, todavia, que eu não esteja ciente da incompletude que caracterizou a situação política surta da guerra. Bem sei: há que não desconhecer as perigos decorrentes de um grande triunfo; e admito que Franco os ignorou em grande parte. Mas isso — que já pertence, aliás, à História do Após-Guerra — não invalida, porém, tudo o que de positivo procede, afinal, da Proto-História da Guerra, e da guerra propriamente dita. E foi a Proto-História da Guerra (e com os olhos particularmente assestados a guerra que se ganhou), que eu, sobretudo, quis cingir-me, e também eu, a pensar nos dias de hoje...
Quanto a imprecisão, de ordem factual, que me aponta, sempre quero dizer-lhe que a inexactidão não é minha: é sua.
Posto isto, aceite o abraço admirador que daqui lhe envia o seu «antiguíssimo e idêntico».

Rodrigo Emílio

in, POLÍTICA
II SÉRIE: N.ºs 24-25 – 15 de Janeiro a 15 de Fevereiro de 1974
página 25, página 26 e página 40