Fim do Cristianismo na Europa, segundo Anselmo
Quem nasceu num contexto de cristianismo tradicional
talvez nunca se tenha dado verdadeiramente conta do que
o cristianismo significou na história.
1 Na sua base, está Jesus de Nazaré, que nasceu
uns quatro ou seis anos antes da nossa era - isto deve-se a um engano do
monge Dionísio, o Exíguo, encarregado de estabelecer no século VI o
novo calendário. Filho de Maria e de José, teve uma juventude
despercebida, trabalhou duramente em vários lugares como artesão. Foi discípulo
de João Baptista, por quem foi baptizado, mas fez uma experiência
avassaladora de Deus como Abbá (querido Papá), que o chamava a
anunciar e a testemunhar o seu Reino, o Reino de Deus, Reino da verdade, da
justiça, do amor, da alegria para todos. Uma notícia boa e feliz. A vida
pública foi curta.
Em Jesus, o Reino de Deus estava actuante. Preocupou-se
com a saúde das pessoas, com que não passassem fome. Curou doentes, física e
psiquicamente doentes. Comia com prostitutas e pecadores públicos. A causa
de Deus é a causa dos seres humanos e, por isso, proclamava com os
profetas estas palavras postas na boca de Deus: "Ide aprender: eu não
quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia." Ousava declarar: "O
Sábado é para o Homem e não o Homem para o Sábado": a saúde, a justiça, a
misericórdia, estão acima do culto. Por isso, entrou em conflito com o Templo,
os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei... Assim, Jerusalém e Roma uniram-se,
numa coligação de interesses religiosos e imperiais, para o crucificar. Ele
podia ter negociado, mas não: foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e
do Amor.
Os horrores da crucifixão não têm descrição. Os romanos consideravam-na
tão humilhante, que só a aplicavam aos escravos e estrangeiros. "Meu Deus,
meu Deus, porque é que me abandonaste?", rezou Jesus, sempre
confiante: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito".
2 Aparentemente, foi o fim. O enigma da história
do cristianismo é como é que os discípulos, que tinham voltado,
desiludidos, às suas vidas, pouco tempo depois estavam outra vez reunidos e
foram anunciar que aquele Jesus crucificado é o Cristo, o
Messias salvador. O que é que se passou naquele intervalo?
Como escreveu J. Duquesne, a história não pode dizer
se Jesus está vivo ou se morreu para sempre, "o que pode dizer é
que se passou alguma coisa naqueles dias, um acontecimento que, abalando
aqueles homens e mulheres, abalou o mundo". A ressurreição, mistério
central do cristianismo, não é um facto verificável historicamente, ela é
um "obscuríssimo mistério", como diz o filósofo e teólogo Andrés
Torres Queiruga. Na sua obra célebre A Verdadeira História de Jesus, E.
P. Sanders, da Universidade de Oxford, conclui que é muito o que sabemos
do Jesus histórico. "Nada é mais misterioso do que a história da
sua ressurreição", mas "sabemos que, depois da sua morte, os seus
seguidores fizeram a experiência de algo que descreveram como a
"ressurreição": a "aparição" de uma pessoa, que tinha
realmente morrido, agora viva, mas transformada. Eles acreditaram nisso,
viveram-no e morreram por isso." Neste processo, criaram um movimento que
cresceu e se estendeu pelo mundo. "Sabemos quem Jesus era, o que
fez, o que ensinou e porque morreu; e, talvez o mais importante, sabemos como
inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas que lhe foram
tão fiéis que mudaram a história."
Essa experiência pessoal do Jesus vivo foi
igualmente tão avassaladora para São Paulo que ele, de perseguidor
dos cristãos, se tornou apóstolo, fez milhares e milhares de quilómetros,
incansavelmente, a pé, a cavalo, de barco, para levar a Boa Nova de Jesus,
o Crucificado-Vivente, desde a costa sul da actual Turquia, a bacia
do mar Egeu (Filipos, Tessalónica, Atenas, Corinto),
até Roma e projectando ir à Hespanha...
Mas São Paulo, na história do cristianismo, não é só
fundamental pela universalidade que lhe deu. O seu papel decisivo consiste
também na reflexão crítica sobre a identidade da fé cristã e as consequências
sociopolíticas da sua verdade: Deus, ressuscitando Jesus, revela que
está com Ele, com a sua mensagem do Evangelho, que é ele que tem razão. O
teólogo François Vouga viu bem, quando escreveu que a ressurreição
de Jesus, o crucificado, "implica uma revolução do olhar sobre a
pessoa humana". "Se realmente Deus se revelou como o Pai de
um crucificado que perdeu tudo quanto um ser humano pode perder para lá da
adopção de Filho, é claro que as linhas de separação religiosas, culturais e
sociais pertencem agora a um mundo ultrapassado. A universalidade deve ser
pensada como o reconhecimento individual de cada sujeito humano, sejam quais
forem a sua nacionalidade, as suas pertenças, o seu sexo: 'Já não há nem
judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher' (Carta aos
Gálatas 3, 28)." Por isso, "ninguém, nem em Israel, nem na Grécia,
nem em Roma, poderia, por exemplo, imaginar que mulheres ensinem, presidam
à Ceia do Senhor ou sejam enviadas de uma cidade a outra como apóstolas".
3 Foi pelo cristianismo que veio ao mundo a
ideia de pessoa e da sua dignidade inviolável.
Lentamente, o cristianismo estendeu-se por toda
a Europa, e a Europa foi cristã até aos séculos XVII-XVIII. O que se
passou para que, num trabalho recente, o jesuíta Victor Codina, possa
escrever: "Assistimos agora na Europa a um verdadeiro colapso da
fé cristã..., o cristianismo é culturalmente irrelevante e foi
exculturado. É um inverno eclesial europeu."
Anselmo Borges
Diário de Notícias, 20 de Fevereiro de 2021
https://www.dn.pt/opiniao/fim-do-cristianismo-na-europa-1-13370456.html
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Fim do cristianismo
na Europa? 2
1Pergunta-se: o que se passou para que o jesuíta Victor
Codina tenha podido escrever, num estudo sobre Ser Cristiano en Europa?, que estamos a assistir a um colapso
do cristianismo na Europa?
Realmente, os dados são preocupantes. Exemplos: na Espanha,
o número de agnósticos e ateus supera o dos católicos praticantes. Na França, a
maior parte da população já não é católica. Na República Checa, mais de 60%
declaram-se ateus. Nos Países Baixos, na Noruega, na Suécia..., o número dos
que se declaram sem religião ronda os 50% da população. E tudo indica que o
número de católicos e dos que se confessam cristãos vá diminuindo na Europa em
geral e é, de facto, notória a exculturação do cristianismo... Quanto à
juventude, os números são alarmantes: "Uma grande parte vive à margem da
Igreja, que, para ela, se converteu numa pequena e estranha seita." A
situação reflecte-se na queda vertiginosa das vocações, com seminários vazios,
muitas paróquias - o seu número aumentará sempre - não têm padre. E não é só
"um inverno eclesial europeu", assistimos também a um exílio de
Deus...
Procurando causas. Quanto à Igreja-instituição, temos o
impacto brutal dos escândalos clamorosos da pedofilia, bem como dos escândalos
económico-financeiros e da corrupção no Vaticano. E, quando olhamos para as
estruturas eclesiásticas, é inevitável a pergunta: onde está a simplicidade e a
fraternidade exigidas pelo estilo do Evangelho? Acrescente-se o patriarcalismo,
a exclusão das mulheres, o clericalismo, que é uma verdadeira "peste da
Igreja", como repete o Papa Francisco, implicando uma "estrutura
perversa", segundo G. Schickendanz. Há "um desfasamento teológico e
cultural da doutrina e dos dogmas", cujas formulações se devem à cultura
helénica, longe da mentalidade moderna e pós-moderna. Acrescente-se "uma
moral legalista e casuística, proveniente de uma antropologia dualista,
pré-moderna, pouco personalista, muito centrada no sexo, que utiliza a pastoral
do pecado e do medo do castigo para manter o povo cativo da Igreja". Uma
liturgia hierática, ritualista, ininteligível para a maioria dos fiéis, pouco
ou nada participada. Para muitos, o cristianismo e a Igreja constituem
"um déjà vu", algo ultrapassado e em desuso; pior: para alguns,
a Igreja é a personificação do pior da nossa cultura: "Repressão, ânsia de
poder, inquisição, censura, machismo, moralismo, ódio à vida, sentido de culpa
e de pecado."
Mais preocupante é que Deus se tornou longínquo, um
estranho, "um Deus no exílio", na expressão de L. Duch. No mundo da
tecnociência, do consumo, do conforto, do hedonismo, do ter, do parecer e do
aparecer, à volta de um "eu" desvinculado de toda a norma, entrou-se
num imanentismo fechado, mais a-religioso do que anti-religioso, mas sem
horizontes de transcendência: não interessa "o que vai para lá da vida
quotidiana, do trabalho, do dinheiro, da comida, da saúde, do consumo, do sexo,
do bem-estar e da segurança de uma velhice tranquila". A vida é para gozar
no sentido mais imediato do termo, na busca de uma juventude perene...
A pergunta é: e quando toda esta lógica é barrada, posta em
causa? Isso constata-se agora, no meio desta catástrofe trágica da pandemia. De
repente, um vírus invisível que invadiu o mundo todo, apoderando-se da
Humanidade, veio travar e pôr em causa estes ideais. O mal-estar é deprimente,
e a esperança está em que, depois de um interregno, a que uma vacina ponha
termo, se volte à "normalidade", isto é, ao ponto onde fomos
apanhados, para podermos avançar outra vez na lógica na qual se vivia. Ainda se
não pensou profundamente sobre a impossibilidade deste raciocínio e seus
pressupostos. De facto, já não se pode ignorar que o modelo anterior está posto
radicalmente em causa. Porque é preciso entender que não é possível continuar o
modelo tecnocrático de desenvolvimento ilimitado, que somos globalmente
interdependentes, que o progresso tem de ter em conta as alterações climáticas,
a biodiversidade, e avançar, portanto, segundo um modelo coerente com a
urgência de "uma ecologia integral", para utilizar a expressão feliz
do Papa Francisco: o grito da Terra e o grito dos pobres, clamando por uma
humanidade justa.
2 Mas também pode acontecer que as pessoas, confrontadas
com o abismo da existência, com a morte, parem e reflictam, indo ao encontro do
essencial, das perguntas últimas, do Mistério vivo e acolhedor. Vêm-me à
memória palavras luminosas do grande Václav Havel, que constatou: "Estamos
a viver na primeira civilização global." Acrescentou: "Mas também
vivemos na primeira civilização ateia, isto é, numa civilização que perdeu a
ligação com o infinito e a eternidade." As consequências disso: "uma
civilização obstinada em perseguir objectivos a curto prazo", "o que
é importante é que um investimento seja rentável em dez ou 15 anos" e não
os efeitos dentro de cem anos. Depois, "o orgulho", a hybris dos
gregos. Por isso, suspeitava de que "a nossa civilização caminha para a
catástrofe", a não ser que cure "a sua miopia e a sua estúpida
convicção de omnisciência, o seu desmesurado orgulho". Achava que "o
desenvolvimento desenfreado de uma civilização deliberadamente ateia deve
alarmar-nos". Considerava-se apenas meio crente, mas com "a certeza
de que no mundo não é tudo apenas efeito do acaso" e convencido de que
"há um ser, uma força velada por um manto de mistério. E é o mistério que
me fascina". "A transcendência é a única alternativa à
extinção."
Anselmo Borges
Diário de Notícias, 27 de Fevereiro de 2021
https://www.dn.pt/opiniao/fim-do-cristianismo-na-europa-2-13396200.html
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Fim do cristianismo
na Europa? (3)
1.Ninguém pode negar que o cristianismo histórico é
responsável por crimes, tragédias, barbaridades. Não duvido de que houve muitos
para quem teria sido preferível não ter ouvido falar de Deus nem de Cristo,
tantos foram os horrores cometidos em seu nome. Mas, no cômputo geral, estou
convencido de que o positivo supera o negativo. Ainda hoje a Igreja presta
serviços incalculáveis aos mais pobres e fracos em toda a parte... E é a
multinacional do sentido, Sentido último.
Cito Antonio Piñero, grande especialista em cristianismo
primitivo e agnóstico. Depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade de
todos enquanto filhos de Deus, escreve que, a partir deste fermento, "se
esperava que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o
cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade
substancial de todos é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao
Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto
quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não
podia ser realidade na sociedade do século I.
O cristianismo está, à maneira de fermento, por trás de
todos os movimentos igualitários e feministas que houve na história, embora
agora não o vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo.
Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura
o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos
movimentos feministas que há nas religiões estão inspirados na cultura
ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se
trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica,
culturalmente cristã." O mesmo dizem muitos outros filósofos, incluindo
agnósticos e ateus.
2. A pergunta é: Ainda será possível hoje ser cristão na
Europa?
Tudo tem de começar por uma experiência, como sucedeu com os
primeiros discípulos e comunidades. A experiência de abertura ao Mistério e à
Transcendência e a oferta de esperança, alegria, futuro e sentido pleno para a
existência. Essa experiência de vida humanamente realizada, na justiça, na
solidariedade, no perdão, no combate por um mundo melhor, dá-se num encontro de
fé em Jesus, que revela que Deus é Pai/Mãe, Amor incondicional e que dá a
salvação, Sentido último. Mesmo os que já são baptizados, a começar por
cardeais, bispo e padres, têm de perguntar a si mesmos se fizeram ou não esta
experiência e se, através dela, podem responder: "Isto é bom para mim.
Para mim." Haverá conversão e começará então a verdadeira reforma da
Igreja, que só pode ser uma Igreja de voluntários e que dá testemunho do
melhor, do Evangelho, notícia boa e felicitante.
3. O cristianismo não é um sistema religioso nem pode ser
uma obrigação, implica, sim, um caminho para uma vida com dignidade e sentido.
Também não é, em primeiro lugar, um discurso, mas um percurso de vida. Como
dizia Simone Weil, a filósofa mística, "onde falta o desejo de
encontrar-se com Deus, não há crentes, mas pobres caricaturas de pessoas que se
dirigem a Deus por medo ou por interesse".
Mas o ser humano também é racional e, por isso, o cristão
precisa de dar razões da fé e da esperança. A fé não pode agredir a razão. Por
exemplo, o modo como se tem apresentado o pecado original é incompatível com a
evolução. Não se pode continuar a baptizar para "apagar a mancha do pecado
original". A morte de Jesus na cruz não foi querida por Deus, ofendido
pelo pecado e exigindo uma reparação infinita. Isso contradiz o Evangelho: Deus
é Amor.
O que é pecado? O que prejudica as pessoas, o que lhes faz
mal. Na celebração da Eucaristia, não se pode continuar a pregar de tal modo
que subreptícia e inconscientemente se instala a ideia de uma presença física
de Cristo: impõe-se entender a distinção entre presença física e presença real,
pois é bem sabido que podemos estar fisicamente presentes e realmente ausentes,
quando, por exemplo, não há amor. Só exemplos.
4. Jesus não fundou a Igreja-instituição que temos. Ele
anunciou, por palavras e obras, o Reino de Deus, força de transformação do
mundo a favor de todos, começando pelos mais frágeis e abandonados. É claro que
não se pode ser ingénuo: alguma organização é precisa. O problema está em que,
contra a vivência das primeiras comunidades, organizadas carismaticamente, se
foi instalando uma organização de poder e já não de serviço.
Na Igreja sempre houve carismas, funções, serviços,
ministérios. A ruptura deu-se, quando, contra o Novo Testamento, que até evitou
a palavra hiereus (sacerdote que oferece sacrifícios), apareceram
ministérios com uma ordenação sacra, que faz que o padre e o bispo se
transformem, dir-se-ia, ontologicamente, implicando uma distinção essencial,
não só de grau, entre o "sacerdócio dos fiéis" e o "sacerdócio
ordenado". A Igreja ficou então dividida em duas classes: o clero, que
manda, e os leigos, que obedecem.
Esta é a raiz da "peste" do clericalismo, pois só
o sacerdote ordenado pode presidir à Eucaristia, só ele, "senhor de
Deus", perdoa os pecados..., e a autoridade na Igreja pressupõe a
ordenação sacra. Esta sacralização levou à lei do celibato e à exclusão das
mulheres...
É urgente a renovação da Igreja como instituição, mas ela
estará bloqueada enquanto se não superar o equívoco da ordenação sacra. Devem
existir ministérios ordenados - na Igreja é preciso um ordenamento -, mas sem
ordens sacras
Anselmo Borges
Diário de Notícias, 6 de Março de 2021
https://www.dn.pt/opiniao/fim-do-cristianismo-na-europa-3-13423356.html
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