António Martinó de Azevedo Coutinho
RUA DIREITA ou UMA MARCHA A DOIS TEMPOS
O mais recente poema de Fernando Correia Pina, aqui divulgado, desencadeou no meu espírito uma série de lembranças. A Marchinha da Rua Direita não é, apenas, um arrumado e limpo conjunto de versos; é um retrato e um apelo.
Fernando Pina é, no meu modesto mas assumido entendimento, o mais inspirado poeta desta Portalegre dos nossos tempos. Poeta e também cronista, acrescente-se, pois ainda não esqueci os fabulosos Postais da Barilândia que uma das épocas gloriosas do Fonte Nova ostentou, como uma das suas mais interessantes e intervenientes colaborações. A maneira muito especial que o autor conhece do uso das palavras mais vulgares do nosso quotidiano, como poucos criando com elas imagens e sentimentos, apenas pertence ao domínio de alguns, raros...
O implacável retrato que agora ele faz da nossa Rua Direita é rigoroso e cruel. É, sobretudo, verdadeiro.
O apelo que esta irónica crítica encobre é o de um saudável regresso ao passado de glória e dinamismo daquela artéria da cidade, de há muito atacada por uma lenta e mortal esclerose. As comunidades, afinal, são vivas e orgânicas, com células, ADN e tudo o mais, sensíveis portanto a moléstias e outras epidemias.
A Marchinha da Rua Direita é uma melodia triste, até dava para letra de um daqueles fados do tipo choradinho, cantando melancolicamente as desventuras de um povo, neste caso o portalegrense.
Nem sempre assim foi. Uma das lembranças que ela trouxe ao meu espírito foi a de um outro poema sobre o mesmo tema. Falo de Ronda do Dia, também publicado em Portalegre, na saudosa revista A Cidade, nos seus pioneiros e difíceis tempos.
Foi no número sete, em Março de 1983 (vão quase trinta anos passados!...), que Carlos Bentes de Oliveira recordou esse poema, da autoria de Roma da Fonseca, médico estomatologista que, por meados do passado século, passava largas temporadas na nossa cidade. Poeta de apreciável qualidade, frequentemente ele publicava sonetos e outras produções poéticas no semanário local A Rabeca.
Ronda do Dia é uma outra visão da Rua Direita, registada em 1950. Então, era muito diferente esta artéria citadina, sede do florescente comércio local, de cafés e outros serviços públicos, cenário de episódios mil, protagonizados pelos seus assíduos frequentadores. O longo poema de Roma da Fonseca é um autêntico fresco, pintado de exuberantes cores, pitoresco nas suas alusões, subtis ou directas, às inúmeras personalidades recenseadas entre o Café Alentejano e o largo do Rossio...
Sessenta anos é, quase, o tempo de duas gerações. Intervalo enorme, maior nos efeitos “físicos” que na própria dimensão temporal, provocou em Portalegre devastações sem conta. E, em quem por aqui viveu esse intervalo, uma saudade sem conta.
Dois tempos, entre a Ronda e a Marchinha. Os compassos do tempo são implacáveis instrumentos, na marcação dos ritmos e das melodias. O supremo metrónomo não oscila hoje como no passado.
Vale a pena ler, aqui e agora, Ronda do Dia e Marchinha da Rua Direita, ler esses poemas e tentar perceber-lhes as diferenças. E também as semelhanças, pois a verdade é que, ontem como hoje, pela Rua Direita “Todos passam como um rio; Procissão de todo o ano; Entre o largo do Rossio; E o Café Alentejano...”
Distingo claramente saudade de saudosismo; percebo a nobreza dos sentimentos positivos desencadeados pela lembrança, crítica, de outras eras; entendo e evito comparações ligeiras e convicções, perigosas, de que eram melhores -por simples definição- os tempos do passado. Não, nada disso: os erros sucessivos, tanto os próprios como os de fácil importação, é que são difíceis, talvez impossíveis, de corrigir.
É certamente por isso que a Marchinha dói e incomoda. A sua mensagem contém um outro imperioso apelo, o de que devemos aprender as lições.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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