António Martinó de Azevedo Coutinho
A TORRE DE BABEL
(edição revista e actualizada)
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1 - Em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras. 2 - Emigrando do Oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Sennaar e nela se fixaram. (...) 4 - Disseram uns para os outros: “Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, tornar-nos-emos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a face da terra.” (...) 6 - E o Senhor disse: “Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. 7 - Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.” 8 - E o Senhor dispersou-os dali por toda a face da Terra, e suspenderam a construção da cidade. (...)
Génesis 11:1-9
A Bíblia que consultei para efeitos da transcrição inicial é uma edição comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal, estando portanto acima da suspeita de qualquer eventual irregularidade. O mais interessante é que a nota de rodapé alusiva, sobre a origem da diversidade de línguas, explica que este fenómeno é um mal, pois coloca-lhe na base um pecado. Coincidências?...
O mal que o Acordo Ortográfico representa, a meu ver, tem na base a via (pecaminosa?) que alguns iluminados inventaram para se tornarem famosos (?!), segundo um projecto de vida altamente discutível em semelhante contexto. Porém, aqui, nem foi necessária uma intervenção divina para logo depois se estabelecer a confusão terrena. Os próprios homens disso se encarregaram.
O episódio protagonizado por Vasco Graça Moura é apenas um pormenor. Se atingiu as repercussões ainda em curso, foi apenas por ter acontecido nas presentes circunstâncias públicas, onde o político-partidário e o sócio-cultural se associaram de forma muito vincada. Mas convém ficarmos atentos aos seus contraditórios ecos...
Se falo da confusão reinante entre os homens que, pela escrita, usam a língua portuguesa como instrumento de comunicação é porque ela é patente nas páginas dos jornais diários, que todos (ou pelo menos alguns) lemos.
Basta dedicar um pouco da nossa atenção a crónicas ou artigos de opinião quase todos os dias disponíveis na imprensa nacional. Nos seus finais, complementando as respectivas autorias, há registos para todos os gostos e predilecções. Eis alguns exemplos dessa confusa diversidade:
Caso A: Acontece num jornal (cujo nome eticamente omito) que aderiu redactorialmente ao Acordo Ortográfico (AO), no pleno e soberano direito que assiste à sua Direcção. A indicação, muito frequente, de que determinado texto segue as normas ortográficas em vigor (Opinião segundo as regras do Acordo Ortográfico), é antecedida de um “esclarecedor” logotipo, onde surge a letra cê a negro riscada por uma cruz a vermelho. Este infeliz “emblema” parece dar razão a alguns críticos do AO, que o reduzem a um indiscriminado e cego ataque aos cês mudos...
Caso B: Porém, mesmo neste jornal onde impera tal regra básica, foi recentemente publicado um artigo de opinião subscrito por uma apreciada escritora nacional (não vou aqui citar um só nome!), que se assume, em título bem explícito, como “esperando continuar a escrever segundo a antiga grafia”.
Caso C: Num recentíssimo texto de opinião (Paradoxo ortográfico) inserido no mesmo jornal, um ex-ministro declara que aquele “foi escrito independentemente do novo acordo ortográfico, ou seja, obedece, ao mesmo tempo, às normas linguísticas anteriores e posteriores a esse acordo”. Tendo submetido a um “popular conversor que habita a internet” o seu texto de mais de trezentas-palavras-trezentas, o autor não foi obrigado a substituir nenhuma.
Nota – Aconselha-se o senhor ex-ministro a dedicar os seus tempos livres ao charadismo, construindo palavras cruzadas para todos os paladares...
Caso D: Num outro diário, segue-se explicitamente uma política editorial de declarada rebeldia ao AO. No entanto, não se escusaram os seus responsáveis de promover uma nova série literária subordinada à trincheira oposta: a Coleção Klássicos, a primeira a respeitar o novo Acordo Ortográfico.
Caso E: Este jornal, num louvável apreço pela independência pessoal dos articulistas, regulares ou eventuais, já tem explicitado esclarecimentos do tipo: “Por opção do autor, o artigo respeita o Acordo Ortográfico”.
Caso F: Finalmente, num terceiro diário, acontece que ainda não foi definida uma linha editorial ortográfica, o que já deu lugar a um apelo nesse sentido por parte do próprio Provedor do Leitor.
Casos G, H, I: Podíamos citar uma infinidade de variantes “explicativas”, todas patentes em diversos e sucessivos artigos de opinião constantes das páginas deste último diário. Por exemplo: “Este texto é aqui publicado com a grafia com a qual o autor o fez chegar ao...”; “O autor do texto seguiu o anterior Acordo Ortográfico”; “Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico”...
Caso J: É o mais recente. Subscreve-o, em artigo publicado num destes jornais, um eurodeputado muito interveniente e o seu conteúdo inclui uma forte crítica à rebeldia de Vasco Graça Moura. A voz das consoantes sem voz encerra um texto pleno da mais fina e inteligente ironia, porém semeado de “neologismos” que parecem arrancados ao vocabulário da Novilíngua de Orwell: auctor, escriptor, víctimas, sancta, tractado, supplementar, accordo, restricções, applauso, impeccável e por aí fora... O pior vem na tal nota final, onde expressamente consta: “A pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico.”
Nota - Omito, por decência, o surrealista comentário que este incoerente delírio me mereceria.
Nova Torre de Babel, talvez a actual confusão ortográfica seja passageira. Talvez...
Porém, dada a inflexibilidade demonstrada por ambas as partes, não correremos o risco de nos ser proposta, num próximo futuro, uma opção pessoal entre livros que ostentem, numa flamante tira exterior, o aviso: “De acordo com o Português antigo”, ou, pelo contrário, proclamando: “Ortografado em Português legal”?
Dispersos por toda a face da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, oxalá não sejamos forçados a perturbar ou a suspender a construção da nossa cultura comum... Talvez possamos continuar a compreender-nos uns aos outros, como sempre aconteceu, se a linguagem de sempre teimar em unir-nos...
Talvez aqui a profecia bíblica fique por cumprir, talvez...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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