António Martinó de Azevedo Coutinho
IN MEMORIAM
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Passa hoje um preciso quarto de século sobre a morte de José Afonso.
Continuo a ouvi-lo com a emoção de sempre. Continuo a admirar a sua coerência de vida, ainda que nem sempre tenha concordado com alguns dos seus comportamentos. Mas entendo-os.
Tenho pela sua memória um grande apreço que o tempo não afectou. Por isso, precisamente por isso, nada escrevo hoje, de novo, sobre ele. Prefiro recorrer a um dos vários textos que, ao longo dos tempos, fui publicando em jornais ou dizendo em rádios, quando me dedicava a essas públicas tarefas.
O que escolhi tem dez anos. Afonso, o Conquistador leu-se no Fonte Nova n.º 942, de 23 de Fevereiro de 2002.
Não tenho nada para lhe acrescentar, a não ser a afirmação de que hoje penso rigorosamente o mesmo.
AFONSO, O CONQUISTADOR
“Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer,
e isso é que fica. Quando as pessoas param há como que um pacto
implícito com o inimigo, tanto no campo política como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os alibis de que nos servimos para
justificar a modorra e o abandono dos campos de luta”.
José Afonso
José Afonso
Faz hoje precisamente 15 anos que Zeca Afonso nos deixou, se podemos aceitar que os poetas morrem.
Creio que com ele se extinguiu uma espécie rara: a dos homens verdadeiramente livres, fraternos e solidários. Estou ainda a vê-lo, por uma tarde perdida no turbilhão dos dias febris de 1975, mais o Francisco Fanhais, nas salas libertadas do Club de Ténis. Estou a vê-los e, sobretudo, a ouvi-los: uma mensagem de libertação, contagiante e sincera, feita hino vibrante contra a miséria, contra o medo, contra a mentira e contra todos os abusos.
Disse alguém que José Afonso foi poeta como António Nobre, cantor como Leo Ferré e intérprete como Paco Ibañez. Talvez, não tenho argumentos para confirmar ou para negar este confronto. Do que estou seguro, sem margem para qualquer dúvida, é que ele correspondeu ao retrato traçado por António Portugal: “Um homem cuja voz foi a nossa voz durante muitos anos e que ajudou a tornar possível o nosso encontro colectivo com uma identidade perdida e com um destino que hoje orgulhosamente assumimos”.
Trovador dos tempos modernos, talvez nenhum como ele tenha sabido ligar a poesia e a música. Renovando uma e outra, associando tradições trovadorescas medievais, cantares de amigo e romances populares, antigos ritmos e velhas dissonâncias, melodias quase estranhas...
Se agitou a consciência nacional, ele revolucionou, sobretudo, a música popular portuguesa. Se inovou, não conhecendo nada da teoria dos sons, ele desempenhou um papel decisivo na invenção da nossa música moderna. Se interpretou a canção dita nacional, ele foi, essencialmente, um lúcido renovador do fado de Coimbra.
Alguns dos clássicos absolutos da história da música popular portuguesa são criações suas. Basta citar Cantigas do Maio, Eu vou ser como a Toupeira ou Venham mais Cinco.
José Afonso não foi apenas um trovador, o maior do nosso tempo. Ele foi, antes do mais, um homem coerente. Podemos não concordar com tudo o que fez, mas isso não concede a ninguém o direito de o ignorar nem a autoridade para o desprezar. Porque soube, sempre, assumir a plena responsabilidade das suas acções. Mesmo quando errou.
Meio libertário e meio anarquista, em estado quase puro, ele nunca se deixou instrumentalizar. E isso jamais foi perdoado por muitos dos que gostariam de o ter tido ao seu dócil serviço. Ao morrer -e soube quando tal ia acontecer- deixou dois pedidos bem significativos: que ninguém vestisse luto e que o seu caixão fosse coberto por um pano vermelho, sem as insígnias ou os emblemas que ele rejeitara. Por isso, marcas da revolução que ele como poucos desejou pura e solidária, apenas os cravos confundiram a sua cor com a do pano, simples, que o envolveu na descida à terra amada.
A maior homenagem fora-lhe prestada com a escolha de Grândola Vila Morena como secreta e clandestina senha da esperança de um povo na sua libertação. Aí, José Afonso entrou para sempre na lenda e no mito, transformado na voz emblemática de uma revolução tranquila, tornado autor do hino oficioso de uma Pátria reencontrada com o seu destino histórico. Destino que alguns se têm encarregado de fazer transviar, mas esta é outra história que não vem hoje a propósito, quando se quer manter o discurso na digna senda da saudade e da homenagem.
Nestes tempos de certa promiscuidade e de alguma conveniente quebra de memórias, saúdo com emoção um dos maiores portugueses do nosso tempo, que nos deixou há precisamente quinze anos, naquela triste e leda madrugada de 23 de Fevereiro de 1987.
Felizmente, ninguém se lembrou de depositar José Afonso no Panteão.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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