\ A VOZ PORTALEGRENSE: Carlos Manuel Serra

sexta-feira, setembro 24, 2010

Carlos Manuel Serra

PARA UM AMIGO

Meu velho e conselheiro Pessoa,

Viveste para a tua obra! Fragmentaste-te verdadeiramente, (re)inventaste e sentiste tudo de todas as maneiras. Sentiste a corrente dos ismos que iam saltando da tua caneta e intelectualizaste o sentimento para perceberes a metafísica do ser. E da forma mais difícil, com a palavra escrita.
Ah!, meu genial Fernando, encenaste o teu drama em gente e brincaste a ser muitos... Leio o teu “Marinheiro”, que deliciou os artistas de Orpheu, e lembro-me da desumanização do teatro, proposta por Maetherlink. Ouço a voz das veladoras num além inalcançável como o eco de outros tempos. Neste “Marinheiro” «textualizas» o sonho consciente da vida. Mas nem só de marinheiros vive(u) a tua escrita. Deixaste uma obra incompleta, porque a vida não te permitiu acabá-la. E não deixaste pouco. Legaste-nos uma Literatura, só compreensível por um grupo sintonizado de leitores especializados em várias áreas, nas quais foste um mestre. É obra. Com Campos, o engenheiro naval, Reis, o médico e helénico, e Caeiro, teu mestre, bucólico e apologista da doutrina oriental zen, abraçaste alguns domínios da complexidade humana, que borbulham na tua criação ensaístico-literária. Não são só estes três elementos que te fazem Pessoa. Segundo a tua maior estudiosa, estendeste-te num universo de 72 «pessoas», contando com heterónimos, semi-heterónimos, personalidades literárias. Aos 6 anos já eras o Chevalier de Pas... Com esta brincadeira de seres muitos, libertaste o desassossego que habita em todos nós. E não me refiro só ao Livro do Desassossego de Bernardo Soares. Só este chegava, mas há tantos outros em que levantas reflexões díspares...
Sei que te tornaste um estrangeiro na sociedade que não te percebeu – e não te percebe – porque estavas e estás avançado na arte de fingir e observar o mundo. “Tabacaria”, lembras-te? Li, há alguns anos, um testemunho de uma jornalista francesa, no qual confessava que “Tabacaria” tinha sido o texto mais belo que lera. Não duvido. Toda a tua criação artística reflecte o teu interior em convulsão. O teu interior sente-se na exterioridade da tua escrita.
Leio a tua obra e constato que te inspiraste em ti mesmo. A inesgotabilidade da tua criação nasceu do modo como sentes e finges esse sentimento verdadeiro ou não. Por isso, melhor do que ninguém, transmitiste o estatuto de actor/espectador de ti próprio, aliás, característica de todos nós. Mas a nossa incapacidade de a perceber e de a alimentar limita-nos...
Vou-me calar, já chega. Acrescento só isto. Não conheço a totalidade da tua obra, nem nunca conhecerei, já que muitos textos dormem inéditos nas profundezas da arca em que os guardavas. Mas podes ter a certeza de que regresso sempre à tua escrita, após as leituras de outros autores, visto que o desassossego que desencadeias em nós, pobres leitores, permite a audição de vozes vindas do indizível, esse espaço só percorrido pela tua genialidade...
Ouve só mais isto (vou dizê-lo baixinho): o desassossego das tuas palavras aumenta a minha competência de leitura, ajuda-me, por isso, na compreensão de outros textos.
Obrigado, mestre...

Um abraço,
Carlos Manuel Serra