António Martinó de Azevedo Coutinho
Analisemos agora a questão do conteúdo, neste caso o “falar à preto”.
Apetece começar por uma espécie de caricatura, mais uma. Os sociólogos modernos chegaram a uma interessante conclusão, sobre a momentosa e clássica questão do impacto que podem ter as formas de cultura -e os modos de vida associados- sobre os ritmos e os sentidos da evolução biológica. Assim, já não seria a cultura uma função da raça, antes seria a raça uma função da cultura.
Vejamos uma consequência da aceitação desta teoria, quase caricatural em relação àquilo em que a humanidade piamente acreditou durante séculos: a linguagem, facto de cultura, teve um efeito de retrocesso sobre o biológico, na medida em que privilegiou, dentro da espécie humana, os indivíduos mais aptos a utilizá-la, em detrimento dos outros.
O facto de os negros de Tintin no Congo não dominarem as normas cultas da linguagem significou, portanto, um constrangimento que lhes bloqueou o acesso à promoção social. E isto, tal como a fragilidade da via férrea que provocou o tal descarrilamento, representa a falência absoluta das compromissos técnicos e educacionais dos colonizadores belgas.
É também óbvio que, embora só a frequência escolar regular possibilite ao falante o domínio das formas cultas da linguagem, o seu desconhecimento não impede o diálogo, daqui resultando que Tintin e os outros brancos compreenderam sempre as situações de comunicação estabelecidas om os negros, e vice-versa.
Assim, o que sobretudo se revela através da fala de um indivíduo é um índice do seu status social. As variações linguísticas manifestadas num diálogo revelam, normalmente, as relações que unem os interlocutores.
Também este fenómeno foi apreendido e patenteado na obra de Hergé.
Senão, o que explicaria o facto, aparentemente contraditório, de ele, em 1946, ter reduzido qualitativamente os níveis do discurso dos líderes negros (chefes locais, reis, feiticeiros, etc.), que na versão original eram superiores aos da população comum?
Todos os discursos foram depois, na prática, nivelados por baixo...
Com efeito, o diversificado discurso linguístico usado na versão de 1930 produzia uma dupla discriminação, primeiro entre os colonizadores e os colonizados, depois no seio destes próprios.
A aceitação deste fenómeno semiótico ajuda também a entender a razão pela qual os animais falantes -macacos, leopardos e rinoceronte (Milou é um caso à parte!)- usam códigos de fala perfeitos... ou quase, num flagrante e “chocante” contraste com a generalidade dos humanos negros. É que, para com o mundo animal, Hergé empregou um outro sistema na marcação das respectivas hierarquias, o da adjectivação: a aranha é azarenta, o papagaio é estúpido, o leão não é tão terrível como parece, o leopardo é horrível, o búfalo é perigoso, etc.
Ficamos, pois, reduzidos à questão fundamental, isto é, avaliar se “falar à preto” significará uma intencional demonstração da inferioridade racial. Se assim for, Hergé empregou um símbolo racista...
Ficamos, pois, reduzidos à questão fundamental, isto é, avaliar se “falar à preto” significará uma intencional demonstração da inferioridade racial. Se assim for, Hergé empregou um símbolo racista...
É minha profunda convicção que, para além do que ficou atrás exposto, Hergé procurou assinalar, de forma inequívoca, as naturais -e reais- dificuldades linguísticas dos congoleses, perante o idioma francês dos colonizadores belgas. Aquilo que, de essencial, os especialistas costumam assinalar sobre o dialecto social popular pode notar-se na relativa iletracia dos discursos dos negros: uma economia das marcas gramaticais no género, número e pessoa, uma nítida redução das pessoas verbais assim como dos tempos dessas conjugações, um maior emprego da voz activa sobre a voz passiva e, finalmente, a utilização dos pronomes pessoais como objectos. Exemplos claros de todos estes “atropelos” linguísticos podem ser encontrados nos balões de Tintin no Congo, sem que tal signifique, necessariamente, o uso deliberado de conotações racistas por parte do autor.
Aliás, para reforçar esta lógica, basta analisar as falas de outras personagens, também desprovidas do rigoroso domínio da linguagem francófona, para aí observar um mesmo tratamento. É o que se passa, por exemplo, com figuras simpáticas como o pequeno Zorrino (O Templo do Sol) ou o sherpa Tharkey (Tintin no Tibete), que se exprimem com deficiências. Tal como acontece com o próprio capitão Haddock, quando, no Tibete, tenta falar inglês, idioma que não domina...
O caso mais exemplar da carência de intenções raciais por parte de Hergé pode encontrar-se no álbum Carvão no Porão (Coke en Stock), álbum de 1958, portanto quase trinta anos após o Congo. Os críticos de Hergé, impossibilitados de o acusar, aí, de racismo, preferiram censurá-lo mais uma vez pelo facto de colocar os negros a “falar à preto”, num diálogo com Haddock...
O desenhador, numa revisão da obra datada de 1967, “emendou” essas falas, nitidamente a contra-gosto, pela ausência prévia de qualquer intenção discriminatória. Aliás, deixou este desconfortável sentimento bem patente num ácido remoque do capitão...
Recordemos outro trecho das declarações de Hergé, numa das suas entrevistas a Numa Sadoul: “- Criticaram-me por colocar os meus Negros a “falar à preto”, e o que significava isso? Que eu era obviamente um miserável racista! Na nova versão do álbum (Carvão no Porão), fi-los exprimirem-se como nos romances traduzidos do americano. É mais directo e certamente também mais justo. Eles não dizem mais: “Sinhô, nós estamos”, mas “Senhor, nós somos”... Não é verdade que o estilo “Banania é bom, é” soa bastante a convencional e pode dar a impressão de que os Negros falam como Negros?... Quanto ao resto, os meus Negros não são nem ridicularizados nem violentados ou, se o forem, não o serão mais do que os Brancos, ou os Amarelos, ou os Vermelhos que coloquei em cena. As minhas personagens são caricaturas, não o esqueçamos! Dito isto, os meus Negros são aqui oprimidos e Tintin toma a sua defesa, porque Tintin é, desde sempre, contra a opressão.”
O racismo é odioso e abominável. A luta contra todas as suas formas, em particular contra as mais insidiosas, como as culturais, é uma obrigação de todos os seres humanos bem formados. Porém, ressuscitar a tal propósito alguns obsoletos fantasmas do passado -ou inventá-los!- constitui uma banal e oca manobra de diversão.
É o que se passa com a actual denúncia de Tintin no Congo, pouco inteligente, desprovida de coerência, talvez subordinada -quem o sabe?- a inconfessáveis desígnios.
Humor negro!? Talvez...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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