António Martinó de Azevedo Coutinho
É lógico, e justo, que se procure enquadrar as recentes acusações a Tintin au Congo no seu contexto. Assim, ficará “equilibrado” o que se vem procurando fazer quanto ao objecto dessas críticas, o próprio álbum, de que temos vindo a preencher progressivamente causas, motivantes e justificações.
Fizemos a investigação possível, a partir do ano da morte de Hergé. Encontrámos, sem que a pesquisa se possa considerar exaustiva e fechada, um interessante conjunto de textos onde a apreciação da obra em apreço ganha direito a especial referência:
• 1984 – Les Métamorphoses de Tintin, livro de Jean-Marie Apostolidès ;
• 1989 – Tintin et Moi. Entretiens avec Hergé, livro de Numa Sadoul (versão definitiva da edição original de 1975, já atrás citada);
• 1993 – Tintin au Congo ou La nègrerie en clichés, artigo de Marie-Rose Maurin Abomo, na revista Textyles;
• 1998 – Les Fantômes du roi Léopold II, livro de Adam Hochschild;
• 2005 – Touts les petits Blancs y en être comme Tintin, artigo de Théo Achez, na revista La Revue Nouvelle;
• 2007 – Em 27 de Julho, início das diligências judiciais de Bienvenu Mondondo, ainda em curso, contra Tintin au Congo;
• 2007 – La BD Tintin au Congo taxée de racisme, artigo de Alexandrine Bouilhet, no jornal Le Figaro;
• 2007 – Tintin au Congo... à interdire aux enfants, absolument !, artigo publicado na revista MRAX info.
Naturalmente, torna-se aqui impossível apresentar cada uma destas peças com o merecido destaque. No entanto, todas elas contribuem para uma melhor compreensão do complexo fenómeno sociocultural e político desencadeado a propósito de um “simples” álbum de banda desenhada, com oitenta anos de “idade”... Por isso, remetendo os interessados para uma consulta específica mais detalhada, limitar-nos-emos agora à súmula essencial de cada uma.
Comecemos pela obra de Jean-Marie Apostolidès, professor de literatura francesa e de estudos teatrais na Universidade de Stanford, na Califórnia. É autor de diversos livros significativos no domínio da história cultural.
O estudo Les Métamorphoses de Tintin constitui hoje uma obra de fundamental referência para o conhecimento dos aspectos políticos, históricos, geopolíticos, psicológicos, culturais e sociais traduzidos nas aventuras de Tintin, criadas por Hergé. Apostolidès chega mesmo a ensaiar uma leitura religiosa ou esotérica dos álbuns.
As suas pertinentes críticas anticolonialistas contidas em algumas dezenas de páginas das Métamorphoses têm sido retomadas, com alguma frequência, por outros autores.
Resumindo o essencial da apreciação de Apostolidès sobre Tintin no Congo, podemos citar:
• Tintin domina as técnicas duma forma absoluta, sem nunca as ter aprendido. Filma imagens e regista sons e, sem passar pelo laboratório ou pelo estúdio, projecta o filme e reproduz o som. Os negros sentem que nunca dominarão esta tecnologia misteriosa.
• Mas há uma solução ainda mais eficaz que o apelo à tecnologia: a invocação a Deus. Quando em diversas situações de aflição ou surpresa, quando sufraga a alma do seu inimigo Tom ou noutros episódios, Tintin invoca Deus como solução, o que normalmente resolve o problema...
• Coco, um subalterno, emprega-se em tarefas secundárias. Os negros, todos os negros, são apresentados como crianças, simpáticos, preguiçosos, meio selvagens... A tarefa principal de Tintin consistirá portanto na sua educação, secundando os missionários que transformam a África em nome do Deus dos cristãos.
• No acolhimento que recebe ao chegar ao Congo, Tintin acredita que a sua reputação o tinha já antecedido. Para agradecer o acolhimento, Tintin será engenheiro dos caminhos-de-ferro, contramestre na organização do trabalho, juiz de paz, comandante-em-chefe, médico e professor...
• As transformações socio-económicas da África são assim pensadas segundo o modelo psicológico em voga no mundo ocidental: enquanto Tintin encarna a Bélgica inteira, cada negro representa potencialmente toda a África.
• Quando Tintin presta homenagem aos reis locais, fá-lo de modo irónico, pois sabe que o rei autêntico é ele. De facto, para os negros, é um indivíduo sagrado: “boula-matari”, o destruidor-das-pedras, epíteto antes apenas atribuído ao explorador Henry Morton Stanley, no sentido de que enfrenta e resolve todas as situações difíceis. Ele não é apenas o branco bom, mas o Deus dos negros, modelo inacessível que lhes serve de guia.
• Quando Tintin presta homenagem aos reis locais, fá-lo de modo irónico, pois sabe que o rei autêntico é ele. De facto, para os negros, é um indivíduo sagrado: “boula-matari”, o destruidor-das-pedras, epíteto antes apenas atribuído ao explorador Henry Morton Stanley, no sentido de que enfrenta e resolve todas as situações difíceis. Ele não é apenas o branco bom, mas o Deus dos negros, modelo inacessível que lhes serve de guia.
• Agindo como age, Tintin repete em África a história da Europa e torna-se como que um verdadeiro refundador do Congo. Ele fará a pacificação e promoverá o desenvolvimento da região, enfrentando forças hostis de três tipos: por um lado, a indolência dos africanos que os impede de produzir como os europeus; por outro, o ódio que entre si alimentam as elites locais despojadas do seu prestígio; por fim, os brancos maus que aproveitam a ignorância e a ingenuidade dos negros para explorar em seu proveito as riquezas da África.
• No final, pode estranhar-se a deificação do herói nesta BD publicada num jornal de inspiração abertamente católica. Tal como o Estado deve apoiar a sua autoridade sobre uma transcendência que a torne incontestável, Hergé ter-se-á aqui aproveitado das crenças animistas em voga na região.
• Na nova versão (colorida e redesenhada), as técnicas de neutralização dos contextos originais criam uma fácil conivência entre o autor e o leitor. Em vez de se ler aí um relato do colonialismo, passa-se a ler Tintin no Congo como uma aventura imaginária no país dos bons selvagens.
A citação a seguir escolhida -a versão definitiva de Tintin et Moi. Entretiens avec Hergé, livro de 1989 compilado por Numa Sadoul e originalmente publicado em 1975- não merece agora qualquer comentário especial. Talvez seja interessante lembrar que o autor nasceu no Congo Brazzaville, coincidência que aqui assume um papel quase profético...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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