António Martinó de Azevedo Coutinho
Natural da República dos Camarões, Marie-Rose Maurin Abomo é professora e investigadora em França. A sua especialidade é a linguagem e a cultura da África Negra, sendo autora de numerosos artigos e estudos nesses domínios.
Em 1993, publicou na revista Textyles um interessante trabalho intitulado Tintin au Congo ou La nègrerie en clichés. A pertinente análise semiótica da doutora Abomo atinge, sumariamente, uma conclusão que aqui se cita: “Esta coincidência da aparição da mensagem visual com a idade de ouro do colonialismo provoca equívocos. Mas é difícil falar aqui de racismo, mesmo quando tudo leva a acreditar no contrário. A linguagem do desenho conduz-nos a uma visão paternalista, mas, não o esqueçamos, Hergé é essencialmente um artista”.
A formação desta especialista permite-lhe uma isenção científica que deve ser realçada, na nítida separação que faz entre a forma e o conteúdo de Tintin no Congo, sem esquecer -bem pelo contrário!- o decisivo contexto socio-político da época. De resto, ela considera e confronta as duas versões (p/b e cor), faz uma abundante recensão dos preconceitos colonialistas dos anos 30, traça o paralelo entre a linguagem do relato em imagens e os clichés da literatura de viagens, revelando sobretudo um profundo conhecimento dos códigos da BD. Marie-Rose Abomo destaca mesmo o facto de Tintin no Congo pertencer tanto à história de um país, a Bélgica, como ao património mundial de um novo género literário -a BD- que começava a implantar-se na Europa depois de um grande sucesso nos Estados Unidos da América.
Cinco anos depois, em 1998, é publicado o livro Les fantômes do roi Léopold II. Un holocauste oublié, da autoria de Adam Hochschild. Jornalista e professor universitário norte-americano, já o conhecemos da intervenção num documentário da BBC sobre o Congo. Recordando o genocídio praticado um século antes no então Congo Belga, o autor relembra páginas esquecidas da história do colonialismo e dos horrores a esta associados. Adam Hochschild serve-se de testemunhos do rei, do explorador Henry Morton Stanley, do escritor Joseph Conrad e de outros, traçando um retrato preciso e bem documentado de todas as sucessivas etapas de uma verdadeira tragédia colectiva humana.
Em Janeiro de 2005, La Revue Nouvelle publica um extenso e incisivo artigo de Théo Hachez, significativamente intitulado Tous les petits Blancs y en être comme Tintin. O autor, respondendo afirmativamente à questão Tintin no Congo merece mais uma denúncia pelo seu carácter politicamente pouco correcto?, desenvolve uma análise sociocrítica sobre o maniqueísmo moral e a hipocrisia de belgas e americanos intervenientes na história em apreço.
Théo Hachez (1957/2008), publicista belga ligado a movimentos operários católicos, foi director e colaborador da revista onde publicou o artigo. Profunda análise de Tintn no Congo, contém o justo aviso de que esta obra não é um manual de História nem possui um estatuto de Catecismo. Considerando virtualmente o Congo como um território de caça e de jogo, Tintin desenvolve aí uma espécie de safari-reportagem, onde encontra as duas faces da presença do homem branco, entre o Bem e o Mal. Os apelidos anglo-saxónicos marcam aqui uma fronteira nítida.
O autor destaca, nas duas edições em confronto, as diferenças linguísticas nas falas dos congoleses, as quais assinalam a “promoção” dos pretos a negros... Depois, assinala alguns episódios marcantes, quase “clássicos”, que serão retomados em críticas posteriores, como por exemplo o do discurso na sala de aula.
Enfim, Théo Hachez, no sua notável análise, assinala a ausência de contradições no Congo de Tintin, com valores assentes numa sociedade carenciada, na alvorada de uma “feliz” globalização de que os belgas (1930) ou os europeus (1946) são portadores. Neste contexto, Tintin instala-se numa posição de herói que encarna um consenso moral prático, onde chega ao exagero de se mascarar de Tom (um dos bandidos) ou de animal selvagem (macaco e girafa), para melhor concretizar os seus “nobres” objectivos.
Eis o “clima” de permanente, embora surda, contestação onde surge, em 27 de Julho de 2007, a demanda judicial de Bienvenu Mbutu Mondondo junto da justiça belga, acusando Tintin no Congo de racismo e xenofobia...
Neste mesmo ano, logo em Agosto, Le Figaro divulga um artigo assinado pela jornalista Alexandrine Bouilhet, correspondente daquele jornal em Bruxelas. Sob o título La BD Tintin au Congo taxée de racisme, o artigo relata o incidente despoletado pela queixa, destacando-lhe os contornos, assim como a pronta e firme reacção da Sociedade Moulinsart a tal propósito.
Finalmente, ainda em 2007, a edição de Setembro/Outubro da revista MRAX info, n.º 179, incluiu um texto intitulado Tintin au Congo... à interdire aux enfants, absolument!
O MRAX (Movimento contra o Racismo, o Anti-Semitismo e a Xenofobia) é uma organização não governamental belga que procura desenvolver uma intervenção cívica específica, sob a controversa direcção de Didier de Laveleye.
O artigo é interessante, muito bem ilustrado, e ridiculariza as intenções de um dossier pedagógico contra o racismo, inserido na revista Spirou. Depois, acentua a tonalidade racista de Tintin no Congo, apoiando-se no facto de serem aí atribuídos traços físicos e características pejorativas uniformemente conotadas com um mesmo grupo, o dos negros, assim definido como inferior a um outro grupo, contrastado, o dos brancos. Esta oposição explícita, que desumaniza os africanos, será igualmente atribuída aos animais.
No entendimento do MRAX, a tecnologia usada por Tintin insere-se no projecto colonialista inseparável da ideologia de um progresso apenas justificativo da pretensa superioridade dos brancos sobre os negros. Os episódios do comboio, da “salomónica” intervenção de Tintin e da congratulação deste para com a obra missionária são igualmente considerados como imposições dos valores, das crenças e dos modelos ocidentais.
Piedosamente, enquanto pela aceitação das “explicações” de Hergé se permite “absolver” o autor, o artigo classifica a obra como claramente condenável. E conclui: “Deixar tais obras entre as mãos das crianças sem prestar atenção a isso significa aceitar que somos cúmplices de um dos principais vectores do racismo: a reprodução mecânica de reflexos xenófobos e de preconceitos herdados por vezes de muito longe, dos nossos pais ou... das nossas leituras de infância”.
Como complemento, o artigo inclui a carta enviada pela organização irmã francesa (MRAP) às Edições Casterman. Usando argumentos similares, e no respeito pelos Direitos do Homem, é aí solicitada a inserção de um aviso aos leitores esclarecendo sobre o contexto histórico contemporâneo da obra e apelando à vigilância contra os preconceitos racistas da obra Tintin no Congo.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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