António Martinó de Azevedo Coutinho
Conheci Tintin au Congo bem cedo. Pelo início dos anos 40, tinha para aí uns cinco ou seis anos, ainda não sabia ler e frequentava então em Portalegre alguns sítios fascinantes como a Pensão Vinte e Um, na Rua dos Canastreiros, a quinta do Eng. Maldonado, na Fontedeira, e a casa deste, ao Rossio.
Era precisamente no sótão desta casa mágica, nos altos do Café Luso, onde também havia passagens secretas e outras maravilhas sem conta para um miúdo como eu, que aí me encontrava com jornais e revistas, como O Papagaio. Eram exemplares avulsos, alguns sem capa ou apenas páginas e capas soltas, mas que deixavam adivinhar histórias fabulosas. Foi entre estas que me encontrei, e para o resto da vida, com Tintin.
Muito mais tarde conheceria a interessante crónica das relações de Adolfo Simões Müller, director da publicação, com Hergé, “pai” de Tintin. A verdade é que, poucos anos depois do nascimento do famoso jornalista belga, os portugueses tiveram a sorte de poder conhecê-lo, nas páginas coloridas de um famoso jornal infanto-juvenil da época. É certo que havia umas “pequenas” diferenças, mas não demos conta delas, nessa altura das nossas vidas.
Por exemplo, entre nós Tintin fora rebaptizado como Tim-Tim e Milou dava pelo nome de Rom-Rom, talvez -quem sabe!?- devido à versão do “acordo ortográfico” então em vigor... Mais, o título da aventura em causa mudara para Tim-Tim em Angola, imagine-se! Congo ou Angola eram para nós mais ou menos o mesmo; ficavam lá para as Áfricas, terras misteriosas e distantes, cenário, apenas cenário, das mais mirabolantes aventuras... e isto era a única coisa verdadeiramente importante.
Viajei nessa altura com Tim-Tim por sítios que nunca mais esqueci. Alguns destes, apenas alguns, já depois os conheci “ao vivo”; quanto a outros, andei pelas suas “bandas” próximas; aos restantes, nem sequer isso, mas um deles, a Escócia, está ainda na minha agenda pessoal de passeios pelo Mundo...
Estes lugares mais ou menos míticos (talvez até exóticos!) correspondem aos cenários onde decorriam as tais aventuras ao tempo transcritas nas páginas soltas de O Papagaio a que tinha acesso: Tim-Tim na América (3 - Tintin en Amérique, 1931-32), Tim-Tim no Oriente (5 - Le lotus bleu, 1934-35), Novas Aventuras de Tim-Tim (4 - Les cigares du pharaon, 1932-33), Tim-Tim em Angola (2 - Tintin au Congo, 1930-31), O Mistério da Orelha Quebrada (6 - L'oreille cassée, 1935-37), A Ilha Negra (7 - L'Île noire, 1937-38), Tim-Tim no Deserto (9 - Le crabe aux pinces d’or, 1940-41), sem título (10 - L'étoile mystérieuse, 1941-42) e O Segredo do Licorne (11 - Le secret de la Licorne, 1942-43). A informação complementar, entre parêntesis, contempla o número de ordem, título e datas da publicação original.
Em suma, das 11 primeiras aventuras de Tintin, apenas não foram divulgadas n’O Papagaio a primeira (Tintin au Pays des Soviets, 1929-30) e a oitava (Le Sceptre d’Ottokar, 1938-39), o que constitui uma autêntica proeza editorial para um pequeno país como nós. Disponho de uma segura teoria pessoal para “explicar” a “exclusão” destas duas histórias, mas isto ficará para outra oportunidade...
Entre 1936 e 1949, limites temporais da divulgação da obra de Hergé na revista nacional, foram aqui publicadas essas nove aventuras de Tintin, criadas entre 1930 e 1943, o que significa, em média, um insignificante “atraso” de cinco anos. Notável!
Voltemos ao Tim-Tim em Angola. As páginas soltas dessa história a que tive acesso, ainda mesmo antes de saber ler-lhes legendas e balões, fascinaram-me. A sua trama, muitas vezes reduzida aos inúmeros episódios (ou gags) inseridos no essencial do seu maravilhoso continuum narrativo, era já perceptível independentemente do fundamental acesso à leitura. Nem dava para percebermos as mutilações derivadas da grosseira remontagem a que os nossos gráficos submetiam as pranchas originais nem sequer o artificialismo do colorido, primário mas sedutor, com que a história “made in Portugal” mascar(r)ava a produção “naïf” de Hergé, criada a preto e branco.
O meu reencontro seguinte com esta história remonta aos anos 60 -uma geração depois!- quando fui adquirindo, pouco a pouco, as aventuras de Tintin na sua edição francesa, da Casterman. Do Tintin au Congo consegui comprar o álbum relativo à história redesenhada em 1946, resumida a 62 páginas em vez das 110 originais e já devidamente colorida pelo autor e pela sua equipa.
Quanto a revistas portuguesas, teríamos de esperar pelos inícios de 1981 para que a versão nacional da revista Tintin recordasse novamente entre nós a história congolesa. O jornal Público, que à causa da difusão da BD de qualidade tem dedicado uma louvável atenção, editou e distribuiu em 2004 o álbum Tintin no Congo, correspondente à história de 1946.
A esta relação resta acrescentar uma edição “histórica”, que também possuo: a dos Archives Hergé, da Casterman, cujo 1.º volume (1973) é consagrado à reprodução fac-similada das três aventuras iniciais de Tintin (...au Pays des Soviets, 1929; ...au Congo, 1930; ...en Amérique, 1931) nas suas versões originais, a preto e branco e em mais de cem páginas cada uma.
Ao revelar assim todo este elevado grau pessoal de interesse, e até de fascínio, pela personalidade criativa de Hergé/Tintin, sinto-me no papel, quase surrealista, de um árbitro que, antes do decisivo encontro, se declarasse incondicional adepto de uma das equipas...
Proponho-me apresentar aqui, com o detalhe possível, o vasto, complexo e até melindroso “dossier” que alia o racismo à obra do autor belga. Poderei, após esta necessária “confissão”, manter-me isento e imparcial?
Apenas posso prometer nada ocultar do que sei e penso, do que muita gente sabe e pensa, sobre o tema em apreço e, sobretudo, comprometo-me com o uso da máxima objectividade possível nas citações, nas fontes e nos testemunhos. De um e de outro lado da barricada...
No entanto já revelei, com assumida lealdade, onde estou.
António Martinó de Azevedo Coutinho
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