Sílvio Lima
Há homens que, apesar de toda a adversidade que a vida – o destino? – lhes reserva, conseguem, por extraordinária força de vontade e riqueza interior, superar os obstáculos, redobrando forças para continuar. Em cada contrariedade vêem um desafio que os motiva ainda para viverem cada mo¬mento com maior intensidade, desfrutando com inexplicável prazer – apesar das vicissitudes e contrariedades – situações adversas, como um louvor à vida.
A vida de Sílvio Vieira Mendes de Lima é disso exemplo elucidativo. Um característico espírito crítico, aliado a uma lucidez intensa como raio fulgurante, impulsionou o seu modo ético de viver a vida e de perspectivar o mundo.
A polémica com o Estado Novo e a Igreja católica, personificados respectivamente em António de Oliveira Salazar e no Cardeal Gonçalves Cerejeira, o abandono a que foi votado após o seu afastamento compulsivo, por questões políticas, da Universidade de Coimbra, que, retirando-o do convívio com os seus alunos e do contacto directo com a Universidade, foi um golpe rude na sua vida, com que “pagou” a sua lucidez e coragem, esclarecem-nos sobre a força de vontade que teve sempre em continuar a viver, lutando pela defesa e divulgação dos seus ideais.
Todo o escritor espelha na sua obra muito de si. Uma personalidade resoluta, fervilhante de ideias, e a vasta erudição que desde cedo de¬monstrou possuir, fizeram de Sílvio Lima um escritor polígrafo. Pensador atento à realidade e aos problemas do seu tempo, estendeu a sua reflexão a múltiplas áreas da cultura humana. A sua personalidade reflecte-se, com o mesmo entusiasmo, a mesma capacidade analítica e racional, adepto da cartesiana “clareza e distinção das ideias”, em toda a sua obra. Homem de fortes e inalienáveis convicções pautou a sua vida não apenas pelo exercício da actividade docente universitária mas também pela intervenção na vida pública por meio dos seus escritos, suscitando em relação a determinados assuntos, tal como desejava, a polémica. Amante do debate livre das ideias e da análise objectiva dos problemas, sempre em favor da verdade, que, segundo ele, ardentemente se procura mas dificilmente se encontra, pro¬curou despertar para diferentes problemáticas os espíritos adormecidos e dogmaticamente acomodados, criticando a incompetência e infecundidade de muitos “pseudo-intelectuais” do seu tempo, lutando, ainda, contra pre¬conceitos enraizados na sociedade da época, querendo, primacialmente, transformar mentalidades e renovar atitudes.
Conseguiu, de modo admirável, conciliar na maior parte das suas obras, a racionalidade com o fulgor e a exaltação que só uma paixão intensa consegue expressar. Paixão com que abraçou, como se de uma causa se tratasse, a defesa incondicional de valores como a Verdade, a Justiça, o Bem, a Tolerância, a Liberdade, pela afirmação da dignidade humana e contra todas as formas de autoritarismo, intolerância, fanatismo e dogmatismo, político ou religioso. A sua vida pessoal acabou por ser extraordinária e negativamente marcada, devido à expressão intrépida e indelével desse espírito crítico e antidogmático que se reflectiu permanentemente na sua obra e na sua postura perante a vida.
O homem era, para ele, o ser concreto – “o homem de carne e osso”, aquele que connosco se cruza diariamente nas ruas, que vive e sofre, que trabalha e que ama – e não um ser abstractamente considerado. Encontra¬mos, assim, no seu pensamento e na forma de ser e de estar no mundo alguma afinidade com as concepções dos grandes pensadores existencialistas Ortega y Gassett e Miguel de Unamuno que, certamente, o influenciaram.
Foi a 6 de Janeiro de 1993, com 88 anos de idade, que faleceu em Coim¬bra, na mesma cidade que o viu nascer, aquele que foi um dos espíritos mais brilhantes e pedagogo exemplar da vetusta universidade dessa cidade, “um humanista, um idealista, um democrata no sentido profundo da palavra”1.
Nascido em 5 de Fevereiro de 1904, foi em Coimbra que Sílvio Vieira Mendes de Lima viveu toda a sua vida e desenvolveu grande parte do seu percurso intelectual e académico, como estudante, professor universitário, investigador, ensaísta e literato. Não confinou a sua reflexão ao restrito espaço da erudição académica, alargando o seu pensamento à análise de diversificados temas, na ânsia intérmina de compreender e descobrir a resposta a questões que, relacionadas com o Homem, eram, para ele, verdadeiramente importantes. A diversidade de temas que abordou nas obras que editou e nos escritos publicados em muitos jornais e revistas expressa também a sua qualidade de autor não só naturalmente dotado de uma vasta e firme cultura, como também detentor de uma desmedida curiosidade intelectual.
1 Em carta de Sílvio Lima a António Sérgio, datada de 10/12/1953. Referida em: Torgal, Luís Reis, “Um Homem Humilde mas Livre na sua Investigação - Sílvio Lima e a sua correspondência no Processso da Pide/DGS”.11
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