\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

segunda-feira, maio 03, 2010

António Martinó de Azevedo Coutinho

CARTA PÓSTUMA AO JORNAL

O DISTRITO DE PORTALEGRE

Caro companheiro de mais de meio século de vida

É piedoso costume, com muitos seguidores, este de se dizer apenas bem de quem morre. É normal esquecermos as coisas más, ou assim-assim, e exagerarmos o que foi bom.
Contigo, vou ser sincero; aliás costumo ser sempre sincero mesmo quando isso dói.
Ainda estou um pouco estupefacto perante a tua morte, tão recente. Era mais ou menos público que o teu estado era mau, mas a gente vai-se habituando às doenças crónicas. Neste Portugal piegas é assim e Portalegre não é excepção...
Sabíamos todos que estavas ligado às máquinas, a soro e com respiração assistida. Mas, mesmo assim, tenho dificuldade em perceber porque morreste, como morreste e precisamente agora. Já lá vamos.
Prefiro começar pelo princípio, porque o teu fim não teve piada nenhuma.
Conheci-te, era eu ainda gaiato e tu já crescido, tinhas para aí uns cinquenta anos.
Lia-te, reconheço, com menos interesse do que o dedicado a O Mosquito ou ao Diabrete, por exemplo. Tinhas poucos bonecos para o meu gosto, sabes?
Apesar de, depois, o Jaime Eustáquio te ter emprestado um pouco da sua arte. Poucos, talvez, se lembrarão hoje disso. Mas aconteceu, foi bonito de ver e eu fui testemunha de tais tempos.



Depois cresci, tu também, e um dia abalei provisoriamente da nossa terra. Foi lá para os meados do século passado, quando a minha função de mestre-escola me levou até às Galveias, antes ainda da tropa. Então assumi como mais oficial a nossa relação, fazendo-me teu “sócio”, na esperança de que te tornasses um remédio para aliviar saudades. E assim aconteceu. Pela minha parte, fui fiel à aliança, mantendo sempre as quotas em dia. Até agora, porque desististe... e de vez.
Mas também quero ser fiel à minha promessa da sinceridade. Algumas vezes, em especial nas últimas décadas, fui eu que estive para desistir. Achei que estavas a trair a nossa aliança, quando te esquecias da qualidade que tinhas assumido como timbre de honra e te apresentavas recheado de matérias intragáveis, ou quase. Tenho a certeza de que, se o pudesses agora fazer, reconhecerias sem esforço que atravessaste fases desastradas quando permitiste que gente com poucos escrúpulos ou com mediocre qualidade se tivesse apoderado das tuas inocentes páginas. Mas enfim, devo reconhecer que fizeste depois um nítido esforço de melhoria.
Já agora, quero levar mais longe esta confissão. Sabes o que me obrigou a nunca desistir, mesmo quando o deveria ter feito, sem disso me ficar o mais leve remorso? Foi a lembrança, incontornável, dos amigos que ligava, e sempre ligarei, à tua própria e longa existência. E lembro apenas três, os que mais me marcaram ainda que de diversas formas e em distintos momentos: Anacleto Martins, José Patrão e Fernando Farinha. Dos três recebi lições de vida e provas de amizade que nunca olvidarei. Do padre Anacleto recordo a coerência máxima de vida e a dádiva total aos outros; do padre Patrão evoco a amizade simples e fraterna assim como a cultura partilhada; do padre Fernando Farinha lembro a natural inteligência e a franqueza mais autêntica.
Vale a pena reler agora António Ventura que, na forma simples e erudita que o caracteriza, relatou o essencial da tua longa vida no seu livro Publicações Periódicas de Portalegre (1836-1974). Podemos aí evocar um significativo conjunto de personalidades locais, e não só, que deixaram as suas vida e obra ligadas ao teu nome. Abstenho-me de aqui as arrolar, pois prefiro remeter os eventuais interessados para uma oportuna consulta da obra.
Já agora, que estamos neste regime de confidências, quero dizer-te que a notícia do teu falecimento me levou à nossa Biblioteca Municipal, desta feita para me embrenhar nas memórias escritas que nos deixaste.
Com alguma emoção, confesso-o, vi os concretos testemunhos da tua rica existência: o primeiro número, o dos cinco anos, o da primeira década de vida mais o dos 25 anos, o do cinquentenário e, sobretudo, o fabuloso número dos cem anos!!!
Podes crer que foi emocionante recordar-te, ia a dizer ao vivo, quando penosamente devo emendar para ao morto... É que ainda não me habituei ao teu estado. Definitivo, apesar das promessas.
Para alguém, como eu, que nem sequer crê na eternidade, mais dificil se torna acreditar em milagres. Até porque, mesmo que “ressuscitasses”, nunca mais serias o mesmo. Pois, sei no que pensas (se é que ainda pensas em alguma coisa!), que na tua história mais do que centenária contam-se umas três ou quatro interrupções. Sim, é verdade, mas nunca como agora te foi passada uma auto-certidão de óbito.
Antes de terminar esta penosa carta póstuma, meu caro O Distrito de Portalegre, quase me apetece dizer -parafraseando Camões- que morres um pouco com a tua pátria chica que isto vai de mal a pior por todo o norte alentejano, a começar pela nossa comum terra natal.


Mas deixa-me recordar contigo o tal -como lhe chamei- fabuloso número comemorativo dos teus cem anos de vida. Sim, não o desmintas, ainda estavas então bem vivo ou, pelo menos, não apresentavas sintomas visíveis de uma moléstia mortal.
Foi o histórico n.º 5877, relativo -lembras-te?- ao dia 27 de Abril de 1984. É um exemplar de referência assinado pelo saudoso padre José Patrão. O seu conteúdo é notável, quase antológico. Aqui e agora, quero recordar -e sobretudo recordar-te- uma voz profética aí contida. Falo do texto Mas temos uma Imprensa Diocesana?, da autoria do malogrado padre J. Cabral. Transcrevo dessa peça dois simples excertos: “... a vida da Igreja não terá já hoje capacidade para o impacto de ser notícia, ela que se inaugurou pela força da “grande notícia” – o evangelho?”; “... julgo que não temos imprensa diocesana. É viável um órgão diocesano? A nossa Igreja Diocesana tem suficiente vitalidade eclesial para um órgão destes? E ainda: - haverá vontade “política” (como agora se diz) ou pastoral (se se quiser) a nível diocesano, em ordem à consecução de pessoas capazes e de disponibilidade de meios para isso?
Caro ex-companheiro de jornada, desculpa o ar demasiado sério que isto tomou. Mas estas palavras que recordei talvez ajudem a explicar a tua precoce morte anunciada, talvez ajudem a perceber como se pode praticar, em ambiente de cristandade, uma espécie de piedosa eutanásia.

Fala claramente o teu número póstumo -e cito- no vil metal e diz que o que tem de ser tem muita força. São outra vez, qual eterna maldição, os trinta dinheiros, desta vez em falta...
E assim se “explica” porque ficas dispensado da firme e cabal eliminação dos fétidos vestígios ainda restantes da cobarde, injusta e nojenta campanha pública contra o teu bispo, assim como da lógica função de trazeres aos fiéis diocesanos os ecos da próxima visita papal.
E assim se explica como é praticado o mau gosto de ser associada uma efeméride de vida, mais um aniversário, a um sinal de morte, o deliberado fim de uma carreira ainda por fazer...
A tua última página -acredita, custa-me dizer-te isto!- mostra os sinais desta contradição, nos cravos ainda vermelhos mas caídos por terra, na horizontal...
Morres afinal com a Pátria ou com a Democracia? Não, isso nunca!
Deixas saudades e, disso tenho a certeza, não apenas neste teu velho companheiro de jornada, mas também urbi et orbi. Parece que a vida é mesmo assim, a morte é que bem se dispensava de o ser.

Um abraço fraterno do
António Martinó de Azevedo Coutinho
Portalegre, no 1.º de Maio de 2010