José Régio faleceu há 40 anos
NAS ENCRUZILHADAS REGIANAS
JOSÉ RÉGIO FALECEU HÁ 40 ANOS
José Régio, de seu verdadeiro nome José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, no longínquo ano de 1901. Passados 24 anos, em 1925 escreveu um livro que assinala a sua revelação como poeta, perante o público e a critica: “Poemas de Deus e do Diabo”.
O seu berço foi o norte de Portugal, mas a cidade de Portalegre e o liceu Mouzinho de Albuquerque acolheram-no de braços abertos. Naquela localidade junto à Serra de S. Mamede se fixou (durante 30 anos) o poeta que, juntamente com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca fundou a Revista “Presença”. A sua actividade literária ao nível da poesia não se resume somente à obra cilada nas linhas anteriores. Publicou também “As Encruzilhadas de Deus” (1936); “Fado” (1941); “Mas Deus é Grande” (1945); “Filho do Homem” (1961) ou “Cântico Suspenso” (1968). Pode dizer-se, com toda a certeza, que atingiu a sua consagração entre os principais poetas portugueses contemporâneos. Mas o “sangue literário” não parou de correr nas veias de José Régio e este revela-se também noutras áreas como romancista, novelista, ensaísta e dramaturgo, assinando obras de relevo como “Jogo da Cabra Cega” (1934); “A Velha Casa” (com cinco volumes escritos de 1945 a 1966); “Benilde ou a Virgem Mãe” (escrito em 1947 e adaptado mais tarde ao cinema por Manoel de Oliveira) ou “Salvação do Mundo” (1955). A terra que o viu nascer despediu-se dele a 22 de Dezembro de 1969. A sua importância ao nível da literatura foi tanta, que as casas onde nasceu e viveu são hoje museus com o seu nome.
Luta do Humano com o Divino
A sua personalidade tem laivos maternais e paternais. Ao pai, um ourives de profissão, terá ficado a dever sobretudo um certo e duradouro gosto pela vida, subjacente e teimoso, mesmo nos piores momentos de desespero. Foi, no entanto, ao temperamento de Maria da Conceição Reis, que José Régio foi buscar o seu fundo humano-artístico. O poeta, que à partida (Poemas de Deus e do Diabo) arvorava eloquentemente a sua autonomia e o seu «não saber»: “Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / Sei que não vou por ai” aproximava-se do fim da vida, igualmente “não sabendo” ao que chegava, mas aparentemente mais sábio, sereno e distanciado: “A pouco e pouco, vou chegando. / Não sei a quê. Sei que na tarde ruiva, / Já mal respira brando, / O vento que só raro ainda ruiva. /... / Na tarde sossegada, / Sem armas, sem escudo, / Chegando a quê? Talvez a nada. /Talvez a tudo.”
Aqui José Régio usa a confissão e a máscara. Aprofunda a revelação do seu eu a um tempo despudorado e secreto. Pergunta e responde… Qual a solução? Esta obra entra no ponto de ruptura e consegue subjugar-nos por aquilo que “não diz” mas insinua. A obra de Régio, com toda a vontade de confissão genuína, está repleta de enigmas. O edifício de clareza da sua literatura deixa-nos apenas a melancólica “certeza” de que não há certezas, de que a verdade polifacetada é mais complexa e inatingível do que sonha a nossa “vã filosofia” e de que, cada seu novo livro, não passa de mais uma tentativa de “ver tudo mais por dentro do que vira”. O grande tema de José Régio é o confronto do eu com o próprio eu. A obra Regiana abre-nos para a profundidade e complexidade de um outro eu, que poderá ser o veneno da sua tragédia. O outro poderá ser definido como “espelho” e como “ideal” – como a verdadeira imagem do que se é e implicitamente o absoluto do que se “deseja ser”.
De modo ligeiro poderemos dizer que o essencial do drama Regiano é a luta entre o humano e o divino. Dentro de si há uma tentativa de ascensão até ao absoluto (positivo ou negativo, na medida em que o absoluto do mal também poderá ser uma via). Esta via (a do mal) de atingir o absoluto é uma das originalidades de Régio. O mal não é visto simplesmente como uma tentação – “eu sou o tentador, não o tentado. A imaginação dos homens é estreita: Só aomal chamaram eles atenção. Como se Deus também não tentasse!” diz o Bobo-Anjo à Rainha sedução na peça Mário.
Deus e o Diabo
Existe um poema do livro iniciático de José Régio, “Poemas de Deus e do Diabo”, que contém germinalmente, todo o seu pensamento religioso. Nessas linhas poéticas, o autor como que faz uma transposição da cena bíblica da Tentação de Jesus no Deserto. O poeta aqui situa-se no meio de duas figuras impressionantes, a de um Homem: «Todo nu, e desfigurado» em cujo rosto exangue «as suas lágrimas corriam misturadas com o seu sangue» e a de «Alguém» que «ria um riso que espantava, / Um riso tenebroso, e cheio de atracção, / Com o fogo dentro como a boca dum vulcão!».
Este conflito dramático entre os “dois vultos desmedidos constitui, no fundo, o destino fatal de cada ser humano”. Perante esta situação o poeta adianta: “A noite em que isto foi, não sei... sei lá?”. Mais tarde, no “Cântico Negro”, o poeta voltará a reafirmar a sua convicção de que cada personalidade humana é obrigada a uma opção misteriosa entre Deus e o Diabo. Embora se refira, apenas a si próprio, está a falar de todos: “Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém” (Poemas de Deus e do Diabo). No mesmo livro Régio adianta: “Seja quem for, / (Deus ou Satanás) Quero chamar-lhe meu senhor, / Acolher-me a seus pés como um escravo”.
Este poema apresenta resíduos daquele «Satanismo», com que o Romantismo literário logrou subsistir, durante algum tempo, nas veias do primeiro Modernismo. Para José Régio, todavia, ele assume tons metafísicos. Deixa de ser uma expressão épica ou “quixotesca”, para se transformar num apelo à liberdade pessoal. O poeta associa o seu “Satanismo” ao “Cântico Negro” zaratustriano do herói, cuja glória é “Criar desumanidade! / Não acompanhar ninguém” (Poemas de Deus e do Diabo).
Na sua poesia é constante uma concepção religiosa tensional e maniqueia, avessa aos aspectos gozosos e jubilosos do cristianismo. Para conseguir uma vibração exasperada do sofrimento, José Régio cria um Cristo poético, um homem das dores que não ressuscita. Existe uma fixação, quem sabe uma contemplação do crucificado, como se não existisse um sol pascal. A vasta colecção de crucifixos que reuniu ao longo da sua vida (que estão patentes ao público nas casas
museu de Portalegre e de Vila Conde) revela-nos uma inclinação pelo lado trágico da religião crista. Um cristianismo de lamento e não de alegria pela manhã de Páscoa.
No poema “Exortação ao meu Anjo”, na Obra “As Encruzilhadas de Deus”, José Régio usa “o ferimento” típico da ansiedade. Por um lado pede “auxílio” ao seu anjo: “Quando, a meio da noite e da ansiedade, / Eu me rojar por terra e te pedir piedade”. Mas nas linhas seguintes deseja a solidão: “Não me apareças nem me fales! / Deixa-me só com o meu cálix”. Será apenas angústia poética ou busca de transcendência? Certezas não existem mas ele afirma quea terra “esconde os mais secretos dos meus gritos!”. A terra pode dissimular “o confidencial”, mas as linhas “de sangue poético” afirmaram que o “Outro” falava “por parábolas, nas vinhas, / E atraía as mulheres públicas, / Os pobres / E as criancinhas” e continuava: “Tinha um ar de iluminado” e “Falou de destinos a cumprir...” (Poema “Quando Deus fala” – As Encruzilhadas de Deus). O poeta equaciona em diversificados registos poéticos uma angustiada procura religiosa, muitas vezes, comparável a Antero de Quental. Não será isto uma real confissão na acepção mais nobre do termo!
A hipérbole de Régio
A leitura da Obra Regiana não poderá ser feita sem pausas... Tal como o autor confessou, quer em conversas quer nos seus livros, não “devemos devorar livros” e “desconfiou sempre de um tal tipo de leitor” a quem chamou de “mangeur de livres”. José Maria dos Reis Pereira foi um leitor atento, apaixonado, perspicaz e fiel aos seus amores, mas não um leitor voraz. Os textos de Camilo, Florbela, Sá-Carneiro e Proust fazem-no “perder tempo”, mas ele gosta de se demorar com os escritos, meditando-os, interrogando-os frequentemente. Em “O Príncipe com Orelhas de Burro”, romance poético-simbólico, riquíssimo em chaves e “confissões” mascaradas, um dos personagens confessará ao perplexo e desorientado Leonel: “Não tenho mais de meia dúzia (de livros). Mas são bons, não é preciso mais”. E acrescenta: “pede que te leiam algumas páginas de vez em quando; e pensa...”.
José Régio prefere saborear a leitura. E a sua literatura não merece ser motivo de deleite? Quando afirma: “A minha vida é um vendaval que se soltou, / É uma onda que se alevantou / É um átomo a mais que se animou...” Não existe nenhum sinal STOP, mas talvez fosse conveniente parar e escutar. Afinal o que é a vida? Não será, como ele salienta no “Cântico Negro”, “o Longe e a Miragem”?
Neste horizonte longínquo falta-lhe a Ressurreição ou como afirma Armindo Trevissan “Régio representa um cristianismo sem Páscoa” mas a sua obra poética “é essencialmente cristã, consideramo-la uma expressão original e válida da poesia religiosa de língua portuguesa". Evidentemente, José Régio refere-se a Cristo. Mas será este Cristo o “Logos de Deus”, que se fez Carne e habitou entre nós? Sem dúvida, não há Cristianismo sem Cristo; a questão,porém, consiste em saber se não haverá Cristos sem Cristianismo. Mas no fundo é na poesia que encontramos mais concentrado um núcleo de obsessões presente em toda a escrita do poeta, geralmente conotada com um individualismo – o célebre “Sei que não vou por aí”. Se sabe qual o caminho ou a estrada porque não utiliza essa via? Não é possível desligarmos os tormentos sinuosos do autor com a incerteza constante do enigma humano e divino.
O homem e o escritor recusava liminarmente as soluções autoritárias, de qualquer tipo, como afirmou numa missiva a seu pai, logo após as eleições presidenciais de 1949: “Para ser, como sou, contra o comunismo, também tinha de me mostrar adversário da ditadura salazarista” (José Régio, Correspondência Familiar, cit. p. 174). Os grandes valores do cristianismo, a mensagem que esse Cristo – Homem, que sempre o impressionou, trouxe ao mundo, temperavam a democracia, que não podia ser apenas formal. E se nesse regime existia alguma divindade para além desse ser supremo em que Régio acreditava, como muito bem expressou na inacabada “Confissão de um Homem Religioso”, essa divindade só podia ser a liberdade. Uma sensação de autonomia libertadora que ao mesmo tempolhe "fornecia" uma angústia no seu ser mais íntimo.
É esta insatisfação permanente que condensa na essência a palavra “poesia”. O padre Manuel Antunes é o próprio a dizer que José Régio “foi a figura literária mais completa do século XX”. Essa importância releva não apenas da estatura artística da sua escrita torrencial e reflexiva, de elevada tensão lírica e dramática, mas também do facto de o escritor ocupar um lugar predominante dentro da tradição da literatura religiosa. Um poeta açoriano (um escritor no sentido pleno da palavra) sobejamente conhecido, Vitorino Nemésio, reconhece que religião e poesia são sentidas, “embora a graus diversos, como esferas de espiritualidade”.
Acima de tudo, a personalidade literária de José Régio está longe do deslocamento situacional da escrita contemporânea. Existe uma enorme galeria de nomes que no seu sangue literato reflectem o mistério da vida e os meandros de uma procura de sentido para a existência humana, pois, como adverte Ortega Y Gasset, “a dúvida sem caminho à vista não é dúvida, é desespero” (Origen histórico de la Filosofia). A ideia de Deus habitava nele como uma percepção muito forte que o levava ao desejo insaciável de vê-la concretizada por um sinal, fosse qual fosse. Porém, essa matriz nunca chegou. Este total silêncio para quem, tão seu “amante” lhe parecia não merecer, levou-o ao desespero e à revolta.
Em conclusão: o poeta foi sempre, poeticamente, um insaciável busca dor de Deus.
JOSÉ RÉGIO FALECEU HÁ 40 ANOS
José Régio, de seu verdadeiro nome José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, no longínquo ano de 1901. Passados 24 anos, em 1925 escreveu um livro que assinala a sua revelação como poeta, perante o público e a critica: “Poemas de Deus e do Diabo”.
O seu berço foi o norte de Portugal, mas a cidade de Portalegre e o liceu Mouzinho de Albuquerque acolheram-no de braços abertos. Naquela localidade junto à Serra de S. Mamede se fixou (durante 30 anos) o poeta que, juntamente com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca fundou a Revista “Presença”. A sua actividade literária ao nível da poesia não se resume somente à obra cilada nas linhas anteriores. Publicou também “As Encruzilhadas de Deus” (1936); “Fado” (1941); “Mas Deus é Grande” (1945); “Filho do Homem” (1961) ou “Cântico Suspenso” (1968). Pode dizer-se, com toda a certeza, que atingiu a sua consagração entre os principais poetas portugueses contemporâneos. Mas o “sangue literário” não parou de correr nas veias de José Régio e este revela-se também noutras áreas como romancista, novelista, ensaísta e dramaturgo, assinando obras de relevo como “Jogo da Cabra Cega” (1934); “A Velha Casa” (com cinco volumes escritos de 1945 a 1966); “Benilde ou a Virgem Mãe” (escrito em 1947 e adaptado mais tarde ao cinema por Manoel de Oliveira) ou “Salvação do Mundo” (1955). A terra que o viu nascer despediu-se dele a 22 de Dezembro de 1969. A sua importância ao nível da literatura foi tanta, que as casas onde nasceu e viveu são hoje museus com o seu nome.
Luta do Humano com o Divino
A sua personalidade tem laivos maternais e paternais. Ao pai, um ourives de profissão, terá ficado a dever sobretudo um certo e duradouro gosto pela vida, subjacente e teimoso, mesmo nos piores momentos de desespero. Foi, no entanto, ao temperamento de Maria da Conceição Reis, que José Régio foi buscar o seu fundo humano-artístico. O poeta, que à partida (Poemas de Deus e do Diabo) arvorava eloquentemente a sua autonomia e o seu «não saber»: “Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou, / Sei que não vou por ai” aproximava-se do fim da vida, igualmente “não sabendo” ao que chegava, mas aparentemente mais sábio, sereno e distanciado: “A pouco e pouco, vou chegando. / Não sei a quê. Sei que na tarde ruiva, / Já mal respira brando, / O vento que só raro ainda ruiva. /... / Na tarde sossegada, / Sem armas, sem escudo, / Chegando a quê? Talvez a nada. /Talvez a tudo.”
Aqui José Régio usa a confissão e a máscara. Aprofunda a revelação do seu eu a um tempo despudorado e secreto. Pergunta e responde… Qual a solução? Esta obra entra no ponto de ruptura e consegue subjugar-nos por aquilo que “não diz” mas insinua. A obra de Régio, com toda a vontade de confissão genuína, está repleta de enigmas. O edifício de clareza da sua literatura deixa-nos apenas a melancólica “certeza” de que não há certezas, de que a verdade polifacetada é mais complexa e inatingível do que sonha a nossa “vã filosofia” e de que, cada seu novo livro, não passa de mais uma tentativa de “ver tudo mais por dentro do que vira”. O grande tema de José Régio é o confronto do eu com o próprio eu. A obra Regiana abre-nos para a profundidade e complexidade de um outro eu, que poderá ser o veneno da sua tragédia. O outro poderá ser definido como “espelho” e como “ideal” – como a verdadeira imagem do que se é e implicitamente o absoluto do que se “deseja ser”.
De modo ligeiro poderemos dizer que o essencial do drama Regiano é a luta entre o humano e o divino. Dentro de si há uma tentativa de ascensão até ao absoluto (positivo ou negativo, na medida em que o absoluto do mal também poderá ser uma via). Esta via (a do mal) de atingir o absoluto é uma das originalidades de Régio. O mal não é visto simplesmente como uma tentação – “eu sou o tentador, não o tentado. A imaginação dos homens é estreita: Só aomal chamaram eles atenção. Como se Deus também não tentasse!” diz o Bobo-Anjo à Rainha sedução na peça Mário.
Deus e o Diabo
Existe um poema do livro iniciático de José Régio, “Poemas de Deus e do Diabo”, que contém germinalmente, todo o seu pensamento religioso. Nessas linhas poéticas, o autor como que faz uma transposição da cena bíblica da Tentação de Jesus no Deserto. O poeta aqui situa-se no meio de duas figuras impressionantes, a de um Homem: «Todo nu, e desfigurado» em cujo rosto exangue «as suas lágrimas corriam misturadas com o seu sangue» e a de «Alguém» que «ria um riso que espantava, / Um riso tenebroso, e cheio de atracção, / Com o fogo dentro como a boca dum vulcão!».
Este conflito dramático entre os “dois vultos desmedidos constitui, no fundo, o destino fatal de cada ser humano”. Perante esta situação o poeta adianta: “A noite em que isto foi, não sei... sei lá?”. Mais tarde, no “Cântico Negro”, o poeta voltará a reafirmar a sua convicção de que cada personalidade humana é obrigada a uma opção misteriosa entre Deus e o Diabo. Embora se refira, apenas a si próprio, está a falar de todos: “Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém” (Poemas de Deus e do Diabo). No mesmo livro Régio adianta: “Seja quem for, / (Deus ou Satanás) Quero chamar-lhe meu senhor, / Acolher-me a seus pés como um escravo”.
Este poema apresenta resíduos daquele «Satanismo», com que o Romantismo literário logrou subsistir, durante algum tempo, nas veias do primeiro Modernismo. Para José Régio, todavia, ele assume tons metafísicos. Deixa de ser uma expressão épica ou “quixotesca”, para se transformar num apelo à liberdade pessoal. O poeta associa o seu “Satanismo” ao “Cântico Negro” zaratustriano do herói, cuja glória é “Criar desumanidade! / Não acompanhar ninguém” (Poemas de Deus e do Diabo).
Na sua poesia é constante uma concepção religiosa tensional e maniqueia, avessa aos aspectos gozosos e jubilosos do cristianismo. Para conseguir uma vibração exasperada do sofrimento, José Régio cria um Cristo poético, um homem das dores que não ressuscita. Existe uma fixação, quem sabe uma contemplação do crucificado, como se não existisse um sol pascal. A vasta colecção de crucifixos que reuniu ao longo da sua vida (que estão patentes ao público nas casas
museu de Portalegre e de Vila Conde) revela-nos uma inclinação pelo lado trágico da religião crista. Um cristianismo de lamento e não de alegria pela manhã de Páscoa.
No poema “Exortação ao meu Anjo”, na Obra “As Encruzilhadas de Deus”, José Régio usa “o ferimento” típico da ansiedade. Por um lado pede “auxílio” ao seu anjo: “Quando, a meio da noite e da ansiedade, / Eu me rojar por terra e te pedir piedade”. Mas nas linhas seguintes deseja a solidão: “Não me apareças nem me fales! / Deixa-me só com o meu cálix”. Será apenas angústia poética ou busca de transcendência? Certezas não existem mas ele afirma quea terra “esconde os mais secretos dos meus gritos!”. A terra pode dissimular “o confidencial”, mas as linhas “de sangue poético” afirmaram que o “Outro” falava “por parábolas, nas vinhas, / E atraía as mulheres públicas, / Os pobres / E as criancinhas” e continuava: “Tinha um ar de iluminado” e “Falou de destinos a cumprir...” (Poema “Quando Deus fala” – As Encruzilhadas de Deus). O poeta equaciona em diversificados registos poéticos uma angustiada procura religiosa, muitas vezes, comparável a Antero de Quental. Não será isto uma real confissão na acepção mais nobre do termo!
A hipérbole de Régio
A leitura da Obra Regiana não poderá ser feita sem pausas... Tal como o autor confessou, quer em conversas quer nos seus livros, não “devemos devorar livros” e “desconfiou sempre de um tal tipo de leitor” a quem chamou de “mangeur de livres”. José Maria dos Reis Pereira foi um leitor atento, apaixonado, perspicaz e fiel aos seus amores, mas não um leitor voraz. Os textos de Camilo, Florbela, Sá-Carneiro e Proust fazem-no “perder tempo”, mas ele gosta de se demorar com os escritos, meditando-os, interrogando-os frequentemente. Em “O Príncipe com Orelhas de Burro”, romance poético-simbólico, riquíssimo em chaves e “confissões” mascaradas, um dos personagens confessará ao perplexo e desorientado Leonel: “Não tenho mais de meia dúzia (de livros). Mas são bons, não é preciso mais”. E acrescenta: “pede que te leiam algumas páginas de vez em quando; e pensa...”.
José Régio prefere saborear a leitura. E a sua literatura não merece ser motivo de deleite? Quando afirma: “A minha vida é um vendaval que se soltou, / É uma onda que se alevantou / É um átomo a mais que se animou...” Não existe nenhum sinal STOP, mas talvez fosse conveniente parar e escutar. Afinal o que é a vida? Não será, como ele salienta no “Cântico Negro”, “o Longe e a Miragem”?
Neste horizonte longínquo falta-lhe a Ressurreição ou como afirma Armindo Trevissan “Régio representa um cristianismo sem Páscoa” mas a sua obra poética “é essencialmente cristã, consideramo-la uma expressão original e válida da poesia religiosa de língua portuguesa". Evidentemente, José Régio refere-se a Cristo. Mas será este Cristo o “Logos de Deus”, que se fez Carne e habitou entre nós? Sem dúvida, não há Cristianismo sem Cristo; a questão,porém, consiste em saber se não haverá Cristos sem Cristianismo. Mas no fundo é na poesia que encontramos mais concentrado um núcleo de obsessões presente em toda a escrita do poeta, geralmente conotada com um individualismo – o célebre “Sei que não vou por aí”. Se sabe qual o caminho ou a estrada porque não utiliza essa via? Não é possível desligarmos os tormentos sinuosos do autor com a incerteza constante do enigma humano e divino.
O homem e o escritor recusava liminarmente as soluções autoritárias, de qualquer tipo, como afirmou numa missiva a seu pai, logo após as eleições presidenciais de 1949: “Para ser, como sou, contra o comunismo, também tinha de me mostrar adversário da ditadura salazarista” (José Régio, Correspondência Familiar, cit. p. 174). Os grandes valores do cristianismo, a mensagem que esse Cristo – Homem, que sempre o impressionou, trouxe ao mundo, temperavam a democracia, que não podia ser apenas formal. E se nesse regime existia alguma divindade para além desse ser supremo em que Régio acreditava, como muito bem expressou na inacabada “Confissão de um Homem Religioso”, essa divindade só podia ser a liberdade. Uma sensação de autonomia libertadora que ao mesmo tempolhe "fornecia" uma angústia no seu ser mais íntimo.
É esta insatisfação permanente que condensa na essência a palavra “poesia”. O padre Manuel Antunes é o próprio a dizer que José Régio “foi a figura literária mais completa do século XX”. Essa importância releva não apenas da estatura artística da sua escrita torrencial e reflexiva, de elevada tensão lírica e dramática, mas também do facto de o escritor ocupar um lugar predominante dentro da tradição da literatura religiosa. Um poeta açoriano (um escritor no sentido pleno da palavra) sobejamente conhecido, Vitorino Nemésio, reconhece que religião e poesia são sentidas, “embora a graus diversos, como esferas de espiritualidade”.
Acima de tudo, a personalidade literária de José Régio está longe do deslocamento situacional da escrita contemporânea. Existe uma enorme galeria de nomes que no seu sangue literato reflectem o mistério da vida e os meandros de uma procura de sentido para a existência humana, pois, como adverte Ortega Y Gasset, “a dúvida sem caminho à vista não é dúvida, é desespero” (Origen histórico de la Filosofia). A ideia de Deus habitava nele como uma percepção muito forte que o levava ao desejo insaciável de vê-la concretizada por um sinal, fosse qual fosse. Porém, essa matriz nunca chegou. Este total silêncio para quem, tão seu “amante” lhe parecia não merecer, levou-o ao desespero e à revolta.
Em conclusão: o poeta foi sempre, poeticamente, um insaciável busca dor de Deus.
Luís Filipe Santos, in Ecclesia
in, O Distrito de Portalegre, Vinde & Vede, IV, 24 Dezembro 2009
in, O Distrito de Portalegre, Vinde & Vede, IV, 24 Dezembro 2009
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