Rui Cardoso Martins
DO ACLAMADO “E SE EU GOSTASSE MUITO DE MORRER”
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TEXTO DE ANA CRISTINA LEONARDO
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TEXTO DE ANA CRISTINA LEONARDO
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RUI CARDOSO MARTINS acaba de publicar o seu segundo romance.
O primeiro, o surpreendente “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer” (Dom Quixote, 2006), foi então, e com justiça, elogiado por António Lobo Antunes. Já este “Deixem Passar o Homem Invisível” teve a sua apresentação a cargo do neurocirurgião João Lobo Antunes, que, como é sabido, também escreve.
Definirá isto uma genealogia?
Considerando as claras diferenças entre os dois irmãos Lobo Antunes, acho que dificilmente poderemos falar de heráldica, pelo menos literária. O que terá a vantagem acrescida de deixar Rui Cardoso Martins definir o seu próprio ADN.
Arrisquemos alguns ingredientes genéticos. O humor, que é, sem dúvida, um constituinte forte (mais próximo de Federico Fellini do que de Woody Allen). A consciência social, que já era visível na estreia, e que volta à tona, com a cegueira a servir (também) uma crítica das cidades e os delírios de Serip, o mágico, o questionamento da Justiça.
O gosto moderno pela fragmentação, esta atenuada agora mas ainda assim notória nas mudanças temáticas, espaciais ou temporais que vão compondo a narrativa. A inclusão de corpos estranhos, não literários, que jogam com tipografia distinta e reforçam o artificialismo, ou o distanciamento narrativo, inevitável 152 anos depois de “Madame Bovary”, e que culmina com a introdução final de três anexos. Etc.
E, porque se falou de Flaubert, exemplifique-se o mot juste: “Escorria [a água] pela cidade e mais chegava pelos veios que desciam das colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas dos eléctricos, numa competição de rios sem nome, ribeiras acabadas de nascer, no meio das avenidas e praças, entrando grossa e gelada para dentro dos subterrâneos, cuspindo baratas e arrastando de novo um cego e uma criança.”
Há, pois, uma criança órfã de pai e um advogado cego à deriva pelos subterrâneos aquáticos de Lisboa, para onde foram sugados pela enxurrada que inundou a cidade. Cá fora, à luz, há gente a tentar salvá-los. Um comandante de bombeiros, a braços com o quebra-cabeças dos esgotos da capital (a personagem mais bem esgalhada, mesmo sem pertencer ao ranking das principais), uma arqueóloga e Serip, o amigo mágico do cego, “anarquista de bom coração, ingénuo com ideias reaccionárias”.
Os dois planos correm paralelos: o cego e a criança perdidos num labirinto escuro descobrindo-se a si próprios através do outro; os que vêem, todos à superfície, mas ainda assim são incapazes de tocar as sombras daqueles que se encontram prisioneiros das entranhas da cidade.
“Deixem Passar o Homem Invisível” não é, porém, uma alegoria platónica invertida. É um romance cujo pretexto assenta num desejo de salvação. E que, ao contar a história desse desejo, lhe vai acrescentando outras histórias. Precisamente aí, na cerzidura desse tecido complexo, a ficção enfraquece. Melhor a tecer a frase do que as personagens, a desconstruir o esqueleto do que a dar-lhe forma. Rui Cardoso Martins oferece-nos uma obra com as costuras à vista. E nisso reside o busílis. Porque a boa oficina é aquela que não nos distrai com o avesso da mão. Seja qual for a genealogia do artífice. Até porque o lugar-comum de que a “arte de contar” vive mais da arte do que daquilo que conta não passa disso mesmo: um lugar-comum. Aguarda-se o próximo trabalho.
Definirá isto uma genealogia?
Considerando as claras diferenças entre os dois irmãos Lobo Antunes, acho que dificilmente poderemos falar de heráldica, pelo menos literária. O que terá a vantagem acrescida de deixar Rui Cardoso Martins definir o seu próprio ADN.
Arrisquemos alguns ingredientes genéticos. O humor, que é, sem dúvida, um constituinte forte (mais próximo de Federico Fellini do que de Woody Allen). A consciência social, que já era visível na estreia, e que volta à tona, com a cegueira a servir (também) uma crítica das cidades e os delírios de Serip, o mágico, o questionamento da Justiça.
O gosto moderno pela fragmentação, esta atenuada agora mas ainda assim notória nas mudanças temáticas, espaciais ou temporais que vão compondo a narrativa. A inclusão de corpos estranhos, não literários, que jogam com tipografia distinta e reforçam o artificialismo, ou o distanciamento narrativo, inevitável 152 anos depois de “Madame Bovary”, e que culmina com a introdução final de três anexos. Etc.
E, porque se falou de Flaubert, exemplifique-se o mot juste: “Escorria [a água] pela cidade e mais chegava pelos veios que desciam das colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas dos eléctricos, numa competição de rios sem nome, ribeiras acabadas de nascer, no meio das avenidas e praças, entrando grossa e gelada para dentro dos subterrâneos, cuspindo baratas e arrastando de novo um cego e uma criança.”
Há, pois, uma criança órfã de pai e um advogado cego à deriva pelos subterrâneos aquáticos de Lisboa, para onde foram sugados pela enxurrada que inundou a cidade. Cá fora, à luz, há gente a tentar salvá-los. Um comandante de bombeiros, a braços com o quebra-cabeças dos esgotos da capital (a personagem mais bem esgalhada, mesmo sem pertencer ao ranking das principais), uma arqueóloga e Serip, o amigo mágico do cego, “anarquista de bom coração, ingénuo com ideias reaccionárias”.
Os dois planos correm paralelos: o cego e a criança perdidos num labirinto escuro descobrindo-se a si próprios através do outro; os que vêem, todos à superfície, mas ainda assim são incapazes de tocar as sombras daqueles que se encontram prisioneiros das entranhas da cidade.
“Deixem Passar o Homem Invisível” não é, porém, uma alegoria platónica invertida. É um romance cujo pretexto assenta num desejo de salvação. E que, ao contar a história desse desejo, lhe vai acrescentando outras histórias. Precisamente aí, na cerzidura desse tecido complexo, a ficção enfraquece. Melhor a tecer a frase do que as personagens, a desconstruir o esqueleto do que a dar-lhe forma. Rui Cardoso Martins oferece-nos uma obra com as costuras à vista. E nisso reside o busílis. Porque a boa oficina é aquela que não nos distrai com o avesso da mão. Seja qual for a genealogia do artífice. Até porque o lugar-comum de que a “arte de contar” vive mais da arte do que daquilo que conta não passa disso mesmo: um lugar-comum. Aguarda-se o próximo trabalho.
32 actual 25 Julho 2009 Expresso
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