\ A VOZ PORTALEGRENSE: Rui Cardoso Martins

sábado, julho 25, 2009

Rui Cardoso Martins

Não há duas sem três

SEGUNDO ROMANCE DE RUI CARDOSO MARTINS, DEPOIS
DO ACLAMADO “E SE EU GOSTASSE MUITO DE MORRER”
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TEXTO DE ANA CRISTINA LEONARDO
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RUI CARDOSO MARTINS acaba de publicar o seu segundo romance.
O primeiro, o surpreendente “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer” (Dom Quixote, 2006), foi então, e com justiça, elogiado por António Lobo Antunes. Já este “Deixem Passar o Homem Invisível” teve a sua apresentação a cargo do neurocirurgião João Lobo Antunes, que, como é sabido, também escreve.
Definirá isto uma genealogia?
Considerando as claras diferenças entre os dois irmãos Lobo Antunes, acho que dificilmente poderemos falar de heráldica, pelo menos literária. O que terá a vantagem acrescida de deixar Rui Cardoso Martins definir o seu próprio ADN.
Arrisquemos alguns ingredientes genéticos. O humor, que é, sem dúvida, um constituinte forte (mais próximo de Federico Fellini do que de Woody Allen). A consciência social, que já era visível na estreia, e que volta à tona, com a cegueira a servir (também) uma crítica das cidades e os delírios de Serip, o mágico, o questionamento da Justiça.
O gosto moderno pela fragmentação, esta atenuada agora mas ainda assim notória nas mudanças temáticas, espaciais ou temporais que vão compondo a narrativa. A inclusão de corpos estranhos, não literários, que jogam com tipografia distinta e reforçam o artificialismo, ou o distanciamento narrativo, inevitável 152 anos depois de “Madame Bovary”, e que culmina com a introdução final de três anexos. Etc.
E, porque se falou de Flaubert, exemplifique-se o mot juste: “Escorria [a água] pela cidade e mais chegava pelos veios que desciam das colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas dos eléctricos, numa competição de rios sem nome, ribeiras acabadas de nascer, no meio das avenidas e praças, entrando grossa e gelada para dentro dos subterrâneos, cuspindo baratas e arrastando de novo um cego e uma criança.”
Há, pois, uma criança órfã de pai e um advogado cego à deriva pelos subterrâneos aquáticos de Lisboa, para onde foram sugados pela enxurrada que inundou a cidade. Cá fora, à luz, há gente a tentar salvá-los. Um comandante de bombeiros, a braços com o quebra-cabeças dos esgotos da capital (a personagem mais bem esgalhada, mesmo sem pertencer ao ranking das principais), uma arqueóloga e Serip, o amigo mágico do cego, “anarquista de bom coração, ingénuo com ideias reaccionárias”.
Os dois planos correm paralelos: o cego e a criança perdidos num labirinto escuro descobrindo-se a si próprios através do outro; os que vêem, todos à superfície, mas ainda assim são incapazes de tocar as sombras daqueles que se encontram prisioneiros das entranhas da cidade.
“Deixem Passar o Homem Invisível” não é, porém, uma alegoria platónica invertida. É um romance cujo pretexto assenta num desejo de salvação. E que, ao contar a história desse desejo, lhe vai acrescentando outras histórias. Precisamente aí, na cerzidura desse tecido complexo, a ficção enfraquece. Melhor a tecer a frase do que as personagens, a desconstruir o esqueleto do que a dar-lhe forma. Rui Cardoso Martins oferece-nos uma obra com as costuras à vista. E nisso reside o busílis. Porque a boa oficina é aquela que não nos distrai com o avesso da mão. Seja qual for a genealogia do artífice. Até porque o lugar-comum de que a “arte de contar” vive mais da arte do que daquilo que conta não passa disso mesmo: um lugar-comum. Aguarda-se o próximo trabalho.
32 actual 25 Julho 2009 Expresso

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