\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

sexta-feira, julho 24, 2009

António Martinó de Azevedo Coutinho

MASSACRE (S)EM DÓ MAIOR
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Felizmente, há Vida para além desta Cidade.
Por exemplo, há o Cinema. E aqui, n’A Voz Portalegrense, isto é patente. Tanto o Luís Filipe Meira como o Mário Casa Nova Martins se têm encarregado de nos lembrar esse factor de sobrevivência, pelo menos cultural.
Os mais recentes e apreciáveis escritos sobre o tema aqui disponibilizados coincidiram com uma das minhas regulares possibilidades de actualizar, ao vivo e lá fora, o contacto pessoal com a 7.ª Arte e, sobretudo, com o facto de ter visualizado, em DVD, uma obra que há meses conhecia de forma indirecta, através da BD, das crónicas e das críticas: A Valsa com Bashir.

As memórias da guerra são um tema quase recorrente na história recente do Cinema. Seria incontável e sempre incompleta uma relação dos títulos alusivos, mesmo resumida aos conflitos das últimas décadas, como os do Vietname, da Coreia, do Afeganistão, da Indochina, do Iraque, das guerras quase esquecidas por terras de África, América Latina ou Oceania e, mesmo, da nossa própria Guerra Colonial. Ainda assim atrevo-me a recordar, a simples título de exemplo, Apocalypse Now, O Caçador ou Platoon, entre os títulos estrangeiros, e Inferno (Joaquim Leitão), Os Imortais (António-Pedro Vasconcelos) ou um dos episódios de Non - A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira), entre as obras nacionais.
A Valsa com Bashir representa, a vários níveis, uma visão distinta de todas as obras anteriores. Porque é israelita, porque foca um dos massacres mais hipócritas, mais cobardes e mais nojentos do nosso tempo, porque se desenvolve em torno de uma grave questão psiquiátrica relacionada com o stress pós-traumático de guerra e, sobretudo, porque todo o filme (excepto breves sequências finais) é realizado sob a forma de animação.

A maneira radical com que Israel, como País, costuma ser encarado, faz por vezes esquecer que o estado judaico é, a todos os títulos (ou apesar de tudo?), uma Democracia. Um filme como este ajuda-nos a recordar tal evidência, quando a partir “de dentro” se assume a coragem cívica de denunciar a cumplicidade do exército (ou do próprio Governo de Tel Aviv!?) nas “facilidades” concedidas às milícias ou falanges cristãs libanesas quando estas massacraram milhares de indefesos palestinianos, incluindo velhos, mulheres e crianças, encerrados nos campos de Sabra e Shatila, em Setembro de 1982.
O realizador do filme, Ari Folman, é também o seu argumentista e produtor. Aliás, a obra assume uma feição quase autobiográfica, quando se sabe que o autor foi soldado na guerra do Líbano e que, durante mais de vinte anos, o seu espírito se revelou incapaz de recordar com algum rigor as cenas vividas nesses dramáticos dias. Apesar das evidentes intervenções ficcionais, a narrativa cinematográfica procura relatar o duro caminho percorrido por Ari Folman na sua pesquisa quase auto-terapêutica da verdade escondida.

Os enigmáticos meandros da memória, reconstruída a partir dos relatos externos que lhe procuraram e ataram os frágeis laços, constituem portanto a estrutura fundamental do enredo fílmico. Os sonhos misturam-se com as lembranças num todo onde o caos inicial vai dando origem, pouco a pouco, a uma cadeia sequencial e perceptível de factos cronológicos.
A solução desta espécie de jogo vai revelar-se portanto, como num puzzle, através do encaixe das peças que cada depoimento vai fornecendo ao jogador.Com a ajuda de amigos e antigos camaradas de guerra, Ari Folman consegue por fim preeencher os espaços e, sobretudo, os vazios da sua memória. O resultado dessa persistente e penosa diligência traduz-se na corajosa denúncia de um acto cuja desumana atrocidade “explica” todos os esquecimentos. O apoio logístico, militar e político ou, pelo menos, a apática “distracção” protagonizada pelo exército israelita proporcionaram a um bando de bárbaros libaneses o sangrento exercício dos seus baixos instintos.
E é precisamente aqui que nos podemos interrogar sobre a validade da animação como suporte narrativo para um tema de semelhante dureza. Porém, quando durante a projecção do filme quase nos esquecemos (ou nos esquecemos de todo!) de que estamos perante fotogramas desenhados e não fotografados, a dúvida quase perde sentido. Atrevo-me, mesmo, a formular a tese contraditória: a fotografia “realista” poderia transmitir-nos a cor, o ritmo, a densidade, a própria força dramática das cenas (e também dos cenários!), o rigor documental, o intenso jogo das cores e das sombras, a alternância entre a realidade e os sonhos ou entre os desejos e o pesadelo, enfim, o persistente diálogo entre memória e percepção?
Que responda cada espectador. A minha posição perante A Valsa de Bashir é a do deslumbramento.

Já não posso manifestar semelhante entusiasmo perante a versão do filme em banda desenhada. Tinha-a previamente adquirido e apreciado na sua versão em língua castelhana, receoso de que uma edição nacional possa nunca ser disponibilizada. Como é costume...
A primeira e interessante questão que se coloca é a de serem os desenhos aparentemente menos adequados à linguagem fílmica que à da BD. Trata-se de distintos sistemas de linguagem, e Ari Folman fez uma opção, correcta, ao conseguir associar com êxito o filme documental à animação desenhada. E devemos aqui realçar a intervenção decisiva de David Polonsky, também israelita, na sua dupla condição de director artístico e de desenhador chefe da obra fílmica.
Para se entender plenamente a qualidade e o rigor colocados na concretização dos complexos objectivos visados pel’A Valsa de Bashir torna-se necessário apreciar o “making of” anexo à edição da obra em DVD. O papel da equipa gráfica -os artista que desenharam e os que animaram os fotogramas- ganha um valor incontornável quanto ao êxito do trabalho final.

Ainda que a reprodução dos desenhos, com traços e cores primorosamente respeitados, seja perfeita, falta na versão BD o ritmo e o envolvimento da banda sonora, também ela própria premiada em consagrados festivais. Depois, segundo pranchas irrepreensivelmente montadas, consagra-se no álbum um puro estilo “Hal Foster” (autor do Príncipe Valente), de onde foram abolidos todos os signos cinéticos, de onde foram esquecidas todas as onomatopeias...

A uma organização esteticamente brilhante corresponde, por isso, uma leitura funcionalmente inanimada e muda...
A Valsa de Bashir em quadradinhos não representa, a meu ver, uma alternativa ou um complemento ao filme. Quando muito, significa uma colecção de imagens de arquivo, uma tosca espécie de caderneta de cromos...
Mas trata-se, afinal, de um filme e é enquanto tal que o deveremos apreciar. E o seu palmarés oficial é impressionante, sobretudo se considerarmos que nenhum nome sonante das telas, intérprete, realizador, produtor ou empresa lhe está associado.
A Valsa com Bashir significa uma voz incómoda e corajosa de denúncia, na descoberta dos complexos mecanismos que revelam as secretas razões pelas quais muitas vezes nos escondemos de nós próprios.
E é Cinema daquele que vale mesmo a pena conhecer...
António Martinó de Azevedo Coutinho