António Martinó de Azevedo Coutinho
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Por exemplo, há o Cinema. E aqui, n’A Voz Portalegrense, isto é patente. Tanto o Luís Filipe Meira como o Mário Casa Nova Martins se têm encarregado de nos lembrar esse factor de sobrevivência, pelo menos cultural.
A Valsa com Bashir representa, a vários níveis, uma visão distinta de todas as obras anteriores. Porque é israelita, porque foca um dos massacres mais hipócritas, mais cobardes e mais nojentos do nosso tempo, porque se desenvolve em torno de uma grave questão psiquiátrica relacionada com o stress pós-traumático de guerra e, sobretudo, porque todo o filme (excepto breves sequências finais) é realizado sob a forma de animação.
Os enigmáticos meandros da memória, reconstruída a partir dos relatos externos que lhe procuraram e ataram os frágeis laços, constituem portanto a estrutura fundamental do enredo fílmico. Os sonhos misturam-se com as lembranças num todo onde o caos inicial vai dando origem, pouco a pouco, a uma cadeia sequencial e perceptível de factos cronológicos.
A solução desta espécie de jogo vai revelar-se portanto, como num puzzle, através do encaixe das peças que cada depoimento vai fornecendo ao jogador.Com a ajuda de amigos e antigos camaradas de guerra, Ari Folman consegue por fim preeencher os espaços e, sobretudo, os vazios da sua memória. O resultado dessa persistente e penosa diligência traduz-se na corajosa denúncia de um acto cuja desumana atrocidade “explica” todos os esquecimentos. O apoio logístico, militar e político ou, pelo menos, a apática “distracção” protagonizada pelo exército israelita proporcionaram a um bando de bárbaros libaneses o sangrento exercício dos seus baixos instintos. E é precisamente aqui que nos podemos interrogar sobre a validade da animação como suporte narrativo para um tema de semelhante dureza. Porém, quando durante a projecção do filme quase nos esquecemos (ou nos esquecemos de todo!) de que estamos perante fotogramas desenhados e não fotografados, a dúvida quase perde sentido. Atrevo-me, mesmo, a formular a tese contraditória: a fotografia “realista” poderia transmitir-nos a cor, o ritmo, a densidade, a própria força dramática das cenas (e também dos cenários!), o rigor documental, o intenso jogo das cores e das sombras, a alternância entre a realidade e os sonhos ou entre os desejos e o pesadelo, enfim, o persistente diálogo entre memória e percepção?
Que responda cada espectador. A minha posição perante A Valsa de Bashir é a do deslumbramento.
A primeira e interessante questão que se coloca é a de serem os desenhos aparentemente menos adequados à linguagem fílmica que à da BD. Trata-se de distintos sistemas de linguagem, e Ari Folman fez uma opção, correcta, ao conseguir associar com êxito o filme documental à animação desenhada. E devemos aqui realçar a intervenção decisiva de David Polonsky, também israelita, na sua dupla condição de director artístico e de desenhador chefe da obra fílmica.
Para se entender plenamente a qualidade e o rigor colocados na concretização dos complexos objectivos visados pel’A Valsa de Bashir torna-se necessário apreciar o “making of” anexo à edição da obra em DVD. O papel da equipa gráfica -os artista que desenharam e os que animaram os fotogramas- ganha um valor incontornável quanto ao êxito do trabalho final.
A Valsa com Bashir significa uma voz incómoda e corajosa de denúncia, na descoberta dos complexos mecanismos que revelam as secretas razões pelas quais muitas vezes nos escondemos de nós próprios.
E é Cinema daquele que vale mesmo a pena conhecer...
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