\ A VOZ PORTALEGRENSE: Opinião

sábado, fevereiro 24, 2007

Opinião

O Mundo dos outros
José Cutileiro
VIRTUDE À SOLTA
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Amigo perspicaz dizia-me que a diferença entre Ronald Reagan e Margaret Thatcher, de um lado, e George W. Bush, do outro, é que o guru dos primeiros era Hayek e os gurus do segundo são pregadores evangelistas da “cintura bíblica” do sul dos Estados Unidos. Hayek, filósofo e Prémio Nobel da economia, acreditava no poder da razão, isto é, aceitaria que lhe demonstrassem não a ter; os pregadores acreditam inabalavelmente na letra da Bíblia e só nela, isto é, arvoram em modelo de comportamento humano e de conhecimento do Universo tradições e costumes bárbaros de um povo de pastores de há três mil anos. Contra um mundo que provadamente os contradiz balançam teimosamente entre a hipocrisia e a asneira.
Não é só a administração Bush a querer impor cegamente as suas preferências morais ao bom senso preciso para vivermos mais ou menos em paz uns com os outros. Assiste-se hoje, em muitos políticos, ao zelo preocupante de alardear virtude. O ano passado, a Assembleia Nacional francesa aprovou um projecto de lei que criminaliza a negação do genocídio de arménios pela Turquia durante a I Guerra Mundial. Isto é, os deputados franceses, que verberam a falta de modernidade, democracia e respeito por direitos humanos da Turquia por levar a tribunal quem diga que houve genocídio, querem que a França se porte exactamente da mesma maneira com quem diga que não o houve. Progresso moral ou expediente oportunista? (Há centenas de milhares de eleitores franceses de origem arménia - e, válvula de segurança, o projecto poderá morrer no senado ou na mesa do Presidente da República.) Decisões deste género pululam: depois de outros parlamentos, a Câmara dos Representantes em Washington prepara-se para declarar oficialmente que houve genocídio de arménios em 1915. (Também há muitos eleitores arménios nos Estados Unidos). O problema da matança de arménios por turcos há quase cem anos deve ser discutido livremente e livremente objecto de investigação histórica. A obtusidade oficial turca na matéria tem de ser corrigida - em vez de servir para estimular obtusidades de sentido contrário.
Entretanto, os ministros da Justiça da União Europeia, debatendo projectos de combate a racismo, xenofobia e incitamento a “crimes de ódio” nos seus países, confrontam-se com proposta de criminalização da negação do Holocausto, do genocídio no Ruanda de 1994 e de outros crimes contra a humanidade definidos pelo Tribunal Criminal Internacional. Por razões históricas, negar o Holocausto é crime na Alemanha e mais alguns países, mas a criminalização geral proposta é inaceitável noutros. Liberdade não é dever de ter razão, é direito a não a ter.
Dito isto, mesmo que tentar fazer bem possa dar mau resultado não se deve seguir outro caminho - desde que não se deixe a virtude tomar o freio nos dentes. Porque se o mal é eficaz - Mugabe a transformar o Zimbabwe num campo de concentração famélico - o bem, contra o que cínicos pensem, também o pode ser.
in, PRIMEIRO CADERNO Expresso, 24 de Fevereiro de 2007 p. 42