Horácio Bento de Gouveia
Horácio Bento de Gouveia (1901-1983)
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QUATRO OBSERVAÇÕES SOBRE HORÁCIO BENTO DE GOUVEIA E A SUA OBRA
por Thierry Proença dos Santos
por Thierry Proença dos Santos
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1. Professor do ensino secundário, jornalista e escritor, Horácio Bento de Gouveia foi principalmente um cronista da ilha e do viver ilhéu, quer de ambientação rural, quer citadina. Escreveu centenas de crónicas em que figuram os traços mais originais da vida quotidiana dos madeirenses e cuja revelação constitui também o ponto fulcral da sua pesquisa literária.
Daí a sua obra constituir um marco importante na história cultural da Madeira. A sua sensibilidade, de um humanismo considerável, revela uma profunda compreensão da precariedade moral ou material, bem como da insatisfação e da dor humana. É esse o material humano que o seu texto sedimenta, imbricando-se com os demais discursos em torno da construção da identidade do povo insular e dos seus hábitos sociais. Para tal, o escritor recorre, naturalmente, a uma estratégia de mobilização do imaginário e do sentir insular em prol da afirmação da cultura madeirense.
Foi dado, realmente, a alguns dos seus romances de viverem a ressurreição do ruralismo, do regresso às origens, do catolicismo existencial, da crítica social, da exaltação dos valores constitutivos da identidade regional e da desconfiança global da cidade e do cosmopolitismo, por ser um modo de vida que, sendo objectivamente inevitável e até indispensável, pode desagregar as afinidades identitárias que constituem a coesão de uma dada estrutura civilizacional.
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2. Se considerarmos o tema profundo dos romances bentianos nas diversas situações apresentadas, verificamos que coexistem dois universos sócio-culturais: o da vida tradicional, da aldeia natal (Ponta Delgada) ou da Ilha, em comunhão com a Natureza, por um lado, e, pelo outro, o mundo urbano, sofisticado e burguês, representado pela cidade do Funchal ou, melhor ainda, pelo Continente (Lisboa ou Coimbra), espaço pelo qual o herói, ao deixar a sua terra, sente uma atracção confusa, à que não consegue resistir até voltar a ter mão em si e conseguir finalmente disciplinar a própria vontade.
Ponta Delgada é uma terreola vincadamente marcada por uma civilização rural, de tradição católica, em que o senso comum exerce uma forte vigilância sobre os actos de cada um. Os romanceiros, os provérbios e as cantigas populares caracterizam o referencial histórico e o imaginário do povo que aí vive. Quase todos os romances bentianos começam pelo relato de uma juventude, senão feliz, pelo menos aconchegada num mundo coerente e seguro, numa comunidade em molde cristão, em que o espaço é circular e cujo centro é a família.
Ao passo que, na cidade do Funchal ou Lisboa, há mais à-vontade e liberdade, o espaço é labiríntico, a cultura é erudita e literária, urbana e cosmopolita (o saber social respigado na convivência em bailes no casino ou em visitas de cortesia às pessoas amigas, na tertúlia de café, etc.).
Por isso, para HBG, a cidade é o lugar para onde se transportam esperanças e vontade de mudança do mundo contemporâneo. Porém, a cidade é, também, um espaço de artificialismo, de degenerescência e de amoralidade. Ao passar sem preparação de um meio para o outro, o protagonista sucumbe ao desalento e à dissolução da sua personalidade. Só progride quem se mantiver fiel à nobreza de espírito e ao respeito das raízes sócio-culturais.
Se Funchal ou Lisboa é o lugar para onde vão as positivas entidades ficcionais que querem vencer na vida, a verdade é que elas nunca esquecem as origens ou o passado e, no final do seu percurso e da narrativa, essas personagens optam pelo regresso ou pela peregrinação à costa Norte, como se a uma romagem o escritor quisesse convidar o leitor.
É, pois, a partir desta tensão criada pelo bipolarismo dos referidos mundos paradigmáticos que se desenvolve o drama fundamental da poética bentiana.
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3. Sempre atento às novidades culturais, Horácio Bento ilhou-se para obedecer a um profundo imperativo de independência pessoal em face de quaisquer correntes que o ligassem demasiado a uma doutrina estético-literária. Não será então de estranhar que, desta atitude individualista, nasçam duas constantes na sua obra: o regionalismo temático, tratado à luz de uma concepção naturalista da vida, e a ficcionalização da sua autobiografia ou do conhecimento directo das coisas e de tipos madeirenses por ele apreendido.
Estas linhas de força enquadram-se, se quisermos situar a obra bentiana no panorama da literatura portuguesa, nas seguintes molduras estéticas: a tradição que cultiva o gosto pelo folclore local de sabor neo-romântico; o crescente interesse pelas curiosidades de carácter etnográfico, reveladoras de uma cultura regional; a influência da Presença, no que nela se propunha de libertação da linguagem e da introspecção; a influência da “nova” literatura brasileira (dos anos trinta), na sua preocupação em legitimar as aspirações do povo no âmbito das dinâmicas sociais, bem como a influência do neo-realismo português, na sua vontade de reformar e denunciar as desequilibradas relações sociais, motivada por um forte sentimento de justiça.
Daí a sua obra constituir um marco importante na história cultural da Madeira. A sua sensibilidade, de um humanismo considerável, revela uma profunda compreensão da precariedade moral ou material, bem como da insatisfação e da dor humana. É esse o material humano que o seu texto sedimenta, imbricando-se com os demais discursos em torno da construção da identidade do povo insular e dos seus hábitos sociais. Para tal, o escritor recorre, naturalmente, a uma estratégia de mobilização do imaginário e do sentir insular em prol da afirmação da cultura madeirense.
Foi dado, realmente, a alguns dos seus romances de viverem a ressurreição do ruralismo, do regresso às origens, do catolicismo existencial, da crítica social, da exaltação dos valores constitutivos da identidade regional e da desconfiança global da cidade e do cosmopolitismo, por ser um modo de vida que, sendo objectivamente inevitável e até indispensável, pode desagregar as afinidades identitárias que constituem a coesão de uma dada estrutura civilizacional.
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2. Se considerarmos o tema profundo dos romances bentianos nas diversas situações apresentadas, verificamos que coexistem dois universos sócio-culturais: o da vida tradicional, da aldeia natal (Ponta Delgada) ou da Ilha, em comunhão com a Natureza, por um lado, e, pelo outro, o mundo urbano, sofisticado e burguês, representado pela cidade do Funchal ou, melhor ainda, pelo Continente (Lisboa ou Coimbra), espaço pelo qual o herói, ao deixar a sua terra, sente uma atracção confusa, à que não consegue resistir até voltar a ter mão em si e conseguir finalmente disciplinar a própria vontade.
Ponta Delgada é uma terreola vincadamente marcada por uma civilização rural, de tradição católica, em que o senso comum exerce uma forte vigilância sobre os actos de cada um. Os romanceiros, os provérbios e as cantigas populares caracterizam o referencial histórico e o imaginário do povo que aí vive. Quase todos os romances bentianos começam pelo relato de uma juventude, senão feliz, pelo menos aconchegada num mundo coerente e seguro, numa comunidade em molde cristão, em que o espaço é circular e cujo centro é a família.
Ao passo que, na cidade do Funchal ou Lisboa, há mais à-vontade e liberdade, o espaço é labiríntico, a cultura é erudita e literária, urbana e cosmopolita (o saber social respigado na convivência em bailes no casino ou em visitas de cortesia às pessoas amigas, na tertúlia de café, etc.).
Por isso, para HBG, a cidade é o lugar para onde se transportam esperanças e vontade de mudança do mundo contemporâneo. Porém, a cidade é, também, um espaço de artificialismo, de degenerescência e de amoralidade. Ao passar sem preparação de um meio para o outro, o protagonista sucumbe ao desalento e à dissolução da sua personalidade. Só progride quem se mantiver fiel à nobreza de espírito e ao respeito das raízes sócio-culturais.
Se Funchal ou Lisboa é o lugar para onde vão as positivas entidades ficcionais que querem vencer na vida, a verdade é que elas nunca esquecem as origens ou o passado e, no final do seu percurso e da narrativa, essas personagens optam pelo regresso ou pela peregrinação à costa Norte, como se a uma romagem o escritor quisesse convidar o leitor.
É, pois, a partir desta tensão criada pelo bipolarismo dos referidos mundos paradigmáticos que se desenvolve o drama fundamental da poética bentiana.
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3. Sempre atento às novidades culturais, Horácio Bento ilhou-se para obedecer a um profundo imperativo de independência pessoal em face de quaisquer correntes que o ligassem demasiado a uma doutrina estético-literária. Não será então de estranhar que, desta atitude individualista, nasçam duas constantes na sua obra: o regionalismo temático, tratado à luz de uma concepção naturalista da vida, e a ficcionalização da sua autobiografia ou do conhecimento directo das coisas e de tipos madeirenses por ele apreendido.
Estas linhas de força enquadram-se, se quisermos situar a obra bentiana no panorama da literatura portuguesa, nas seguintes molduras estéticas: a tradição que cultiva o gosto pelo folclore local de sabor neo-romântico; o crescente interesse pelas curiosidades de carácter etnográfico, reveladoras de uma cultura regional; a influência da Presença, no que nela se propunha de libertação da linguagem e da introspecção; a influência da “nova” literatura brasileira (dos anos trinta), na sua preocupação em legitimar as aspirações do povo no âmbito das dinâmicas sociais, bem como a influência do neo-realismo português, na sua vontade de reformar e denunciar as desequilibradas relações sociais, motivada por um forte sentimento de justiça.
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4. Em todo o caso, nascido da vontade de afirmação artística e de uma vivência genuína em osmose com o meio envolvente, a obra de HBG deve ter lugar marcado nos escaparates dos livros a folhear, quer por deleite, quer por necessidade de consulta, por integrar a matéria inerente às quatro dimensões culturais: a da memória, a da reflexão, a da criação e a da crítica. Se olharmos para o percurso de vida do escritor e para a obra que nos legou, não custa afirmar que, com Horácio Bento de Gouveia, a Madeira encontrou, finalmente, o romancista de fôlego que há muito reclamava e merecia.
4. Em todo o caso, nascido da vontade de afirmação artística e de uma vivência genuína em osmose com o meio envolvente, a obra de HBG deve ter lugar marcado nos escaparates dos livros a folhear, quer por deleite, quer por necessidade de consulta, por integrar a matéria inerente às quatro dimensões culturais: a da memória, a da reflexão, a da criação e a da crítica. Se olharmos para o percurso de vida do escritor e para a obra que nos legou, não custa afirmar que, com Horácio Bento de Gouveia, a Madeira encontrou, finalmente, o romancista de fôlego que há muito reclamava e merecia.
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