Revista 'Portugueses' - Editorial
Nas grandes questões que hoje agitam o mundo, é preferível começar por escutar a voz de protagonistas grandiosos da história sem nos deixarmos enredar demasiado nas intermináveis informações com que a comunicação social nos brinda. Repare-se, por exemplo no que todos os dias ocorre na Rússia.
Afirmava Napoleão em 1802, com a sua demagógica tendência para simplificar as ideias, que apenas existiam duas nações no mundo: a Rússia e o Ocidente. O imperador via claramente que a escala geopolítica de ambos os conjuntos era idêntica. Restava acrescentar a América do Norte, como previu o seu compatriota Alexis de Tocqueville em 1852, para visionar os grandes poderes do mundo contemporâneo.
Um ponto da afirmação anterior passa habitualmente despercebido: a Rússia jamais constituiu uma nação no sentido ocidental. Foi sempre uma área de civilização, dominada pelo povo grão-Russo e mantida como sociedade política através de processos, ideias e instituições, que copiam o Império Bizantino e que a tornaram na Terceira Roma.
Após a queda de Bizâncio, conquistada pêlos turcos, a ideia de Moscovo como novo império ortodoxo e Terceira Roma, ganhou peso nos círculos eclesiásticos russos. Numa carta famosa, o monge Filofei de Pskov escreveu que «segundo os livros proféticos, todos os impérios cristãos têm um fim e convergirão para um único império, o do nosso gossudar (suzerano), isto é, o Império da Rússia».
Esta visão foi depois institucionalizada, em primeiro lugar por Ivan IV, o Terrível da dinastia Rurik, coroado em 1547 como Czar dos Ortodoxos. Em 1589 o patriarca de Constantinopla instituiu o primeiro Patriarca autónomo de Moscovo, reconhecendo oficialmente a Terceira Roma. Por sinal, o Credo ortodoxo apenas refere que o Espírito Santo é «consubstanciai ao Pai». Exclui a fórmula «e ao Filho» presente no Credo de Niceia. Este ponto muito especioso da exclusão do filioque sempre foi apresentado como uma prova do escasso individualismo do povo russo, e por consequência do seu comunitarismo predominante.
Este período de cristalização da sociedade russa imperial coincidiu com a consolidação das Nações-estado ocidentais, que se tinham a pouco e pouco emancipado do moribundo Império Romano-Germânico. Em 1576, o Imperador Maximiliano IV ofereceu a Ivan o Terrível, a coroa imperial do Oriente, a troco de auxílio na luta contra os turcos. Ivan IV não quis aceitar uma soberania espúria e herética; e estava ocupado em liquidar os boiardes, para os substituir por uma nova nobreza baseada na prestação de serviços, a oprichnína. Sob a direcção do czar, a Rússia desligou-se da evolução política do Ocidente.
O processo de ocidentalização iniciado nos começos do século XVIII por Pedro o Grande, da dinastia dos Romanov, e que se traduziu pitorescamente em mudar os fatos, a etiqueta, e mandar tosquiar as barbas à nobreza da Corte, não alterou muito o tecido social russo. A Nobreza e a incipiente classe média continuaram a dar corpo a uma sociedade hierática. A derrota dos revoltosos liberais de Dezembro de 1825 provou que tudo continuava a depender do czar, o que ajuda a explicar a particular devoção do povo russo pelo seu supremo representante.
Em confronto com as ideias pró-ocidentais dos zapadnicki seguiram-se as doutrinas eslavófilas e antiocidentais com que a inteiligentsia realçou a velha ideia religiosa da Terceira Roma, e a transformou na missão histórica de salvação da Humanidade. Quem lê os romances de Dostoievski poderá surpreender-se que o mesmo escritor tenha sido um dos grandes arautos deste messianismo: a Rússia deveria «libertar» o mundo, para depois criar a sociedade que reunisse todos os verdadeiros cristãos. A angústia do Raskoinikov (o cismático) de Crime e Castigo era afinal as dores do parto da «Santa Madre Rússia».
Com todos estes antecedentes, não surpreende que o proletariado russo tenha acabado por aderir, depois de esgotadas todas as soluções alternativas, ao «reino» de paz, pão, e liberdade que lhe foi prometido pêlos comunistas. O que normalmente não se refere é que os sovietes vieram interromper o processo político de ocidentalização da sociedade russa, empreendido pêlos últimos czares, e possibilitado pelas reformas económicas do Conde Witte e de Stolypin, que aproximaram a Rússia do Ocidente: por alguma razão a Rússia lutou ingloriamente pela França e Grã-Bretanha na 16 Grande Guerra. Mas quando em Ekaterinburg, os bolcheviques assassinaram o Czar e a família, estavam a pôr fim à única fonte de poder que poderia humanizar a Rússia. Como diz o doutor Jivago, «eles» queriam mostrar que não se poderia voltar atrás.
Com o triunfo de Lenine, a sociedade russa regrediu, e o povo uma vez mais se tornou servidor dos «czares vermelhos» e da sua nomenklatura. Os funcionários bolcheviques fizeram o seu trabalho e ressurgiu a oprichnína, agora baseada numa sociedade industrial. Não foi difícil a Eisenstein retratar o velho Ivan o Terrível como o modelo de que Staline era a sombra.
Neste quadro de uma evolução política com séculos.a perestroika de Gorbachev introduz novos elementos, mas não muda a figura principal. Como afirmou em 1989 Sakharov, o problema fundamental da sociedade russa é a união: um espaço imperial que poderá perder amanhã alguns territórios de fronteira, mas que não se pode dar ao luxo de se desintegrar em nações problemáticas. No recente referendo de Março, a maioria russa manifestou de forma difusa a vontade de permanência na união. Num ponto a situação de Gorbachev é semelhante à de Nicolau II; tem de reformar a conta-gotas uma sociedade onde as mentalidades já mudaram radicalmente.
No entanto, existe uma grande diferença: Nicolau II tinha atrás de si 200 anos de unificação e expansão imperial, em que as violências vinham progressivamente a diminuir; tanto diminuíram que o czar aceitou abdicar no irmão, quando podia escolher manter-se no trono. Pelo contrário, o corajoso Gorbachev transporta consigo setenta anos de violências e uma súbita contracção das fronteiras do império. Não tem outra escolha senão seguir em frente até que os adversários cedam, ou que alguém o mate.
Quanto ao doutor Jivago não tinha qualquer poder, não percebia nada de geopolítica, e nem sequer existia. Nem por isso a sua visão da paz deixa de ser a grande pergunta à qual nem a teoria nem a prática do comunismo souberam responder. Deus ajude a Santa Rússia!
Afirmava Napoleão em 1802, com a sua demagógica tendência para simplificar as ideias, que apenas existiam duas nações no mundo: a Rússia e o Ocidente. O imperador via claramente que a escala geopolítica de ambos os conjuntos era idêntica. Restava acrescentar a América do Norte, como previu o seu compatriota Alexis de Tocqueville em 1852, para visionar os grandes poderes do mundo contemporâneo.
Um ponto da afirmação anterior passa habitualmente despercebido: a Rússia jamais constituiu uma nação no sentido ocidental. Foi sempre uma área de civilização, dominada pelo povo grão-Russo e mantida como sociedade política através de processos, ideias e instituições, que copiam o Império Bizantino e que a tornaram na Terceira Roma.
Após a queda de Bizâncio, conquistada pêlos turcos, a ideia de Moscovo como novo império ortodoxo e Terceira Roma, ganhou peso nos círculos eclesiásticos russos. Numa carta famosa, o monge Filofei de Pskov escreveu que «segundo os livros proféticos, todos os impérios cristãos têm um fim e convergirão para um único império, o do nosso gossudar (suzerano), isto é, o Império da Rússia».
Esta visão foi depois institucionalizada, em primeiro lugar por Ivan IV, o Terrível da dinastia Rurik, coroado em 1547 como Czar dos Ortodoxos. Em 1589 o patriarca de Constantinopla instituiu o primeiro Patriarca autónomo de Moscovo, reconhecendo oficialmente a Terceira Roma. Por sinal, o Credo ortodoxo apenas refere que o Espírito Santo é «consubstanciai ao Pai». Exclui a fórmula «e ao Filho» presente no Credo de Niceia. Este ponto muito especioso da exclusão do filioque sempre foi apresentado como uma prova do escasso individualismo do povo russo, e por consequência do seu comunitarismo predominante.
Este período de cristalização da sociedade russa imperial coincidiu com a consolidação das Nações-estado ocidentais, que se tinham a pouco e pouco emancipado do moribundo Império Romano-Germânico. Em 1576, o Imperador Maximiliano IV ofereceu a Ivan o Terrível, a coroa imperial do Oriente, a troco de auxílio na luta contra os turcos. Ivan IV não quis aceitar uma soberania espúria e herética; e estava ocupado em liquidar os boiardes, para os substituir por uma nova nobreza baseada na prestação de serviços, a oprichnína. Sob a direcção do czar, a Rússia desligou-se da evolução política do Ocidente.
O processo de ocidentalização iniciado nos começos do século XVIII por Pedro o Grande, da dinastia dos Romanov, e que se traduziu pitorescamente em mudar os fatos, a etiqueta, e mandar tosquiar as barbas à nobreza da Corte, não alterou muito o tecido social russo. A Nobreza e a incipiente classe média continuaram a dar corpo a uma sociedade hierática. A derrota dos revoltosos liberais de Dezembro de 1825 provou que tudo continuava a depender do czar, o que ajuda a explicar a particular devoção do povo russo pelo seu supremo representante.
Em confronto com as ideias pró-ocidentais dos zapadnicki seguiram-se as doutrinas eslavófilas e antiocidentais com que a inteiligentsia realçou a velha ideia religiosa da Terceira Roma, e a transformou na missão histórica de salvação da Humanidade. Quem lê os romances de Dostoievski poderá surpreender-se que o mesmo escritor tenha sido um dos grandes arautos deste messianismo: a Rússia deveria «libertar» o mundo, para depois criar a sociedade que reunisse todos os verdadeiros cristãos. A angústia do Raskoinikov (o cismático) de Crime e Castigo era afinal as dores do parto da «Santa Madre Rússia».
Com todos estes antecedentes, não surpreende que o proletariado russo tenha acabado por aderir, depois de esgotadas todas as soluções alternativas, ao «reino» de paz, pão, e liberdade que lhe foi prometido pêlos comunistas. O que normalmente não se refere é que os sovietes vieram interromper o processo político de ocidentalização da sociedade russa, empreendido pêlos últimos czares, e possibilitado pelas reformas económicas do Conde Witte e de Stolypin, que aproximaram a Rússia do Ocidente: por alguma razão a Rússia lutou ingloriamente pela França e Grã-Bretanha na 16 Grande Guerra. Mas quando em Ekaterinburg, os bolcheviques assassinaram o Czar e a família, estavam a pôr fim à única fonte de poder que poderia humanizar a Rússia. Como diz o doutor Jivago, «eles» queriam mostrar que não se poderia voltar atrás.
Com o triunfo de Lenine, a sociedade russa regrediu, e o povo uma vez mais se tornou servidor dos «czares vermelhos» e da sua nomenklatura. Os funcionários bolcheviques fizeram o seu trabalho e ressurgiu a oprichnína, agora baseada numa sociedade industrial. Não foi difícil a Eisenstein retratar o velho Ivan o Terrível como o modelo de que Staline era a sombra.
Neste quadro de uma evolução política com séculos.a perestroika de Gorbachev introduz novos elementos, mas não muda a figura principal. Como afirmou em 1989 Sakharov, o problema fundamental da sociedade russa é a união: um espaço imperial que poderá perder amanhã alguns territórios de fronteira, mas que não se pode dar ao luxo de se desintegrar em nações problemáticas. No recente referendo de Março, a maioria russa manifestou de forma difusa a vontade de permanência na união. Num ponto a situação de Gorbachev é semelhante à de Nicolau II; tem de reformar a conta-gotas uma sociedade onde as mentalidades já mudaram radicalmente.
No entanto, existe uma grande diferença: Nicolau II tinha atrás de si 200 anos de unificação e expansão imperial, em que as violências vinham progressivamente a diminuir; tanto diminuíram que o czar aceitou abdicar no irmão, quando podia escolher manter-se no trono. Pelo contrário, o corajoso Gorbachev transporta consigo setenta anos de violências e uma súbita contracção das fronteiras do império. Não tem outra escolha senão seguir em frente até que os adversários cedam, ou que alguém o mate.
Quanto ao doutor Jivago não tinha qualquer poder, não percebia nada de geopolítica, e nem sequer existia. Nem por isso a sua visão da paz deixa de ser a grande pergunta à qual nem a teoria nem a prática do comunismo souberam responder. Deus ajude a Santa Rússia!
Mendo Castro Henriques
PORTUGUESES - N.º 17 – Abril de 1991 - pg. 2
PORTUGUESES - N.º 17 – Abril de 1991 - pg. 2
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