Jaime Nogueira Pinto - Donald Trump
As ideias de Trump
Ao contrário
dos conservadores do establishment que não se atrevem a pegar nas questões
nacionais e a falar aos deplorables, Trump conseguiu chegar aos homens comuns,
em guerra com as elites, que os abandonaram
Segunda-feira, 26 de Setembro, pelas 09.00 da noite
(duas da manhã de dia 27, hora de Lisboa), vai dar-se o já chamado "debate
do século": Hillary Clinton versus Donald Trump. O duelo de 90 minutos vai
ser moderado por Lester Holt, do NBC Nightly News.
Continuidade
e ruptura
O centro da campanha eleitoral é a política interna
mas a política externa conta sempre e Hillary procurará levar a conversa para
aí - e daí para a alegada ignorância e inexperiência de Trump e para o facto de
alguns dos mandarins do establishment republicano e conservador da Defesa, dos
Negócios Estrangeiros e da Intelligence o criticarem ao ponto de admitirem
cruzar a linha da lealdade partidária. É o que farão o general Brent Scowcroft,
ex-NSC de George H. Bush, e Richard Armitage. Também Chester Crocker e Eliot
Cohen, sem que tivessem apoiado Clinton, exprimiram já reservas quanto à
capacidade geopolítica de Trump.
A política exterior de Hillary será uma política de
continuidade, na linha do internacionalismo liberal: business as usual em
relação aos seus predecessores - Obama mas também George W. Bush, que, com toda
a família, tem combatido Trump. E os Bush contam na Florida, onde Hillary e
Trump estão empatados.
Mas terá Trump uma política externa além das
invectivas anti-islâmicas e antilatinas? Será Trump apenas um retórico básico,
que ameaça tudo e todos com muros e fronteiras, que combate o livre comércio e
proíbe os muçulmanos de entrarem nos Estados Unidos?
Joshua Mitchell, politólogo de Georgetown, publicou no
Politico Magazine um texto intitulado "Donald Trump does have ideas - and
we"d better pay attention to them".
O
regresso da fronteira
Começando por citar Tocqueville - "na América as
ideias são uma espécie de poeira mental" -, Mitchell enumera os programas
políticos reduzidos a slogans das sucessivas Administrações: New Deal
(Roosevelt), Containment (Truman), New Frontier (Kennedy) War on Poverty
(Johnson), Silent Majority (Nixon), Star Wars (Reagan). Para Mitchell, Trump
tem de facto ideias, só que são ideias fora ou contra o sistema: contra a
globalização, as "identidades", a political correctness e o consenso
bipartidário em política externa. Mitchell resume assim o ideário de Trump:
1. As fronteiras e a política de imigração têm
importância.
2. Os interesses nacionais devem passar à frente dos
chamados interesses globais.
3. O empreendedorismo e a descentralização são
essenciais.
4. O discurso politicamente correcto é hipócrita e
irrealista e deve ser repudiado.
Depois da vitória na Convenção republicana, Trump teve
um péssimo mês de Agosto, causado pelos seus desmandos retóricos contra grupos
étnicos, americanos e estrangeiros e pelo seu pronto aproveitamento pelos
media.
Hillary ultrapassou-o, assumindo uma liderança
confortável, entre oito e dez pontos, mas a partir da mudança da equipa de
conselheiros e estrategas, do encontro com o presidente Peña Nieto do México e
de uma maior cautela na comunicação, Trump recuperou: não só no confronto
nacional, onde está colado a Hillary, como, e mais importante, em swing states,
como a Florida, o Ohio e a Carolina do Norte.
Porque é que Trump, apesar de Trump ou pour cause,
conta, e porque é que o seu discurso é eficaz? Primeiro porque as fronteiras
contam para a identidade política, para a soberania e para a segurança e depois
porque a desregulação teve efeitos trágicos na economia e na sociedade
americanas, desertificando cidades e regiões industriais. Trump e Saunders
pegaram no tema e até Clinton passou a anunciar medidas punitivas para os
deslocalizadores e a deixar passar um certo cepticismo quanto aos tratados
projectados de comércio livre.
Da
imigração
Os Estados Unidos - e o resto das Américas - foram
feitos por imigrantes, pelas dezenas de milhões de emigrantes europeus que ali
aportaram, entre o fim das guerras napoleónicas e a Grande Guerra de 1914-18.
Michael Cimino, o realizador de The Deer Hunter e de Heaven"s Gate,
defendia essa teoria - os americanos eram os imigrantes, melhor, os filhos dos
imigrantes. Só que uma coisa foi a chegada às terras grandes e vazias do continente
de famílias de europeus cristãos, trabalhadores, cheios de esperança e de
vontade de vencer; outra, é a imigração de hoje, tantas vezes controlada por
máfias criminosas de passadores e explorada por empresários sem escrúpulos que
alimentam o sistema dos ilegais que lhes baixam os custos do trabalho.
O controlo da imigração não é xenofobia é um direito
do Estado e os imigrantes já não são aquilo que talvez nunca tivessem sido mas
que, ainda assim, ainda era passível de idealização: a bela fraternidade eslava
do Deer Hunter, a caçar veados nas frias manhãs da Pensilvânia, em vésperas de
partir para o Vietname.
Trump argumenta que a elite bipartidária
internacionalista - políticos, banqueiros, jornalistas - redireccionou
interesseiramente as lealdades políticas para uma suposta humanidade ou uma
vaga consciência universal em vez do que para ele devia estar no vértice da
lealdade política: a nação próxima e concreta, a humanidade possível.
Heresia
económica
Puxando pelos seus galões (para alguns discutíveis) de
empresário de sucesso, Trump sustenta que uma baixa radical dos impostos trará
de volta à América capital emigrado para as periferias baratas ou aparcado em
paraísos fiscais. Grande parte da sua agenda económico-social contradiz a
ortodoxia do GOP, que preza a liberdade de comércio e as virtudes da
globalização. Ao defender uma economia regulada, que proteja as indústrias e os
empregos americanos na América, Trump sabe que está a incorrer em pecado
mortal; sabe também que reincide nas ofensas graves ao mercado livre quando
propõe a subida dos salários, a segurança social e a assistência médica, embora
com privatização parcial.
Tudo isto lhe valeu a desconfiança de grandes doadores
republicanos, como os irmãos Koch. No fim de Agosto, Hillary tinha reunido 542
milhões de dólares e Trump 402 milhões.
Mas além da questão nacional, o ponto em que Trump
mais se distingue de Hillary é na guerra à correcção política. Nesse sentido,
Trump é muitas vezes o inimigo número um de Trump. Não se pode - sobretudo
quando se tem a inimizade de 80% dos media norte-americanos e de 90% dos
internacionais - desqualificar um juiz americano porque é de origem mexicana;
ou falar em proibir de entrar no país um quarto da humanidade (em que se
incluem alguns dos grandes investidores e aliados dos EUA) só porque é
muçulmana.
Embora a correctíssima Hillary não se tenha inibido de
insultar outros muitos milhões de patrícios seus num círculo de progressistas
chiques de Nova Iorque, chamando "deplorables" e racistas aos
partidários de Trump, há que considerar o desconto de que beneficia entre os
comunicadores, sempre benevolentes para com estes e outros
"pecadilhos" da candidata democrata, como as histórias confusas dos
e-mails do State Department e da Fundação Clinton.
De um modo rude, às vezes brutal, às vezes errático,
Trump pegou na outra realidade política. Os Estados Unidos e a Europa são
orientados intelectualmente por um pensamento único, que soube e sabe
apresentar os seus preconceitos ideológicos como princípios nobres e verdades
universais. A Realpolitik que voltou a regular o mundo é tabu no Ocidente. Daí
a revolta das classes médias e trabalhadoras.
O candidato Trump tem ares e modos de spoiled child,
de filho de pai rico, arrogante, extravagante e solipsista. Hillary é de outro
género - uma mulher fria, determinada e ambiciosa, uma Lady Macbeth que joga
todas as cartas, até a feminista. Qualquer um dos dois tem mais inimigos do que
amigos entre os eleitores.
No entanto, ao contrário dos conservadores do
establishment que não se atrevem a pegar nas questões nacionais e a falar aos
deplorables, Donald Trump conseguiu chegar aos homens comuns, em guerra com as
elites, que os abandonaram. Até talvez por ser um filho pródigo dessas mesmas
elites, um outcast aventureiro, um extraterrestre a quem tudo é censurado mas
logo depois também desculpado. A 9 de Novembro saberemos o fim desta história.
Jaime Nogueira Pinto
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