Fernando Correia Pina
Os Camões de Évora
uma referência inédita ao autor dos Lusíadas?
Sobre o ramo dos Camões que, ao longo de séculos, teve Évora por sua pátria não escasseiam as notícias. Muitos foram os que, ao correr dos anos, se debruçaram sobre a matéria que aqui de novo se retoma, dando continuação ao trabalho de cabouqueiro a que, humoradamente, Túlio Espanca se referiu, em comunicação apresentada à Academia Portuguesa de História, corria o já distante ano de 1980.
De facto, apesar do muito considerável volume de dados já coligidos e publicados sobre esta família eborense, continua a ser notória, em termos genealógicos, a ausência de um estudo mais aprofundado. Os valiosos contributos de uma plêiade de ilustres camonistas não bastaram para esclarecer as muitas incertezas que teimam em rodear as suas origens ou os percursos de vida dos seus membros, tal como o de Luís de Camões, seu parente próximo cuja hipotética presença na cidade tem sido abordada por diversos investigadores.
Se bem que a presença dos Camões em Évora na centúria de quatrocentos não careça de confirmação, porque de há muito documentalmente comprovada propusemo-nos, em trabalho a publicar, de que o presente artigo faz resumo, restringir o âmbito da pesquisa ao horizonte temporal da segunda metade de quinhentos, porquanto é dado adquirido a permanência na cidade de muitos dos membros da família. De não menor peso na tomada dessa orientação da pesquisa foi o facto da existência, nos acervos documentais locais, de uma vastíssima documentação de importância capital para o estudo, não apenas na perspectiva local mas também de um ponto de vista regional já que muitos dos Camões de que nos ocupamos se podem localizar, periodicamente, noutras áreas do actual distrito de Évora e mesmo no de Portalegre, onde alguns deles nasceram e foram baptizados.
À semelhança da restante nobreza, a manutenção do lustre familiar escorava-se na percepção de rendas provenientes da tenência de bens de raiz, vinculados em capelas e morgados, localizadas nos termos de Évora, Avis, Estremoz, Montemor-o-Novo e Elvas, entre outros.
Em Évora sabe-se terem residido, alguns deles, às Portas de Moura e outros na Rua de Machede, na Rua dos Mercadores, ou ainda no outeiro da Vila Nova, com foro de fidalgos da casa d´el-rei, ligados por casamento a outras destacadas linhagens naturais da cidade ou com assento em outras terras do reino, tal como sucedeu com os Macedos, de raízes escalabitanas. Também em Évora tiveram a sua última morada, em jazigos de família na igreja de São Francisco e na sé catedral, na capela de S. Pedro, posteriormente capela da Vera Cruz.
Foi na sequência de um daqueles consórcios, como mais adiante se verá, que chegou até nós o que, eventualmente, será mais uma referência directa ao vate, a juntar às pouquíssimas já localizadas, produzidas no âmbito do perdão real pela agressão a Gonçalo Borges, da concessão de tença por D. Sebastião, ou do imprimatur da epopeia, de todos bem conhecidas.
Entre os membros da família contava-se D. Francisca de Castro, filha de António Vaz de Camões e de D. Isabel de Castro. Esta D. Francisca era já, em 1551, órfã de pai e mãe, falecidos ambos em meados da década de quinhentos e quarenta, tendo ficado por seu tutor Duarte de Camões, irmão de seu pai.
Nesse mesmo ano, aos quinze dias do mês de Dezembro, nas pousadas de D. Diogo de Castro, capitão-mor de Évora, igualmente tio de D. Francisca, estando aí presentes o dito tutor e procurador, Duarte de Camões, e Francisco Figueira, estribeiro-mor do infante D. Luís, como procurador de seu sobrinho D. Martinho de Távora, residente na alcáçova de Santarém, celebrou-se o contrato de casamento e arras dos respectivos constituintes. Para o casal levou D. Francisca seis mil cruzados e diversos bens, rendas e propriedades situadas nos termos de S. Mansos, Pavia, Avis e Évora.
Três semanas mais tarde, a sete de Janeiro do ano seguinte de 1552, encontrava-se em Évora D. Martinho de Távora para tomar contas e dar quitação a Duarte de Camões no respeitante à administração dos bens patrimoniais de D. Francisca de Castro.
Nestas circunstâncias apresentou Duarte de Camões diversos documentos, em papel e pergaminho, relativos à gestão dos bens da sua sobrinha e tutelada, na presença do tabelião Fernão d`Arco que em sua nota, conservada no Arquivo Distrital de Évora, lavrou o auto de que a seguir se transcrevem, em leitura actualizada, alguns excertos:
Saibam os que este instrumento de conhecimento e quitação virem que no ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos cinquenta e dois em os vinte sete dias do mês de Janeiro em a cidade de Évora nas casas do senhor Duarte de Camões fidalgo da casa del rei nosso senhor estando aí presente o senhor dom Martinho de Távora outrossim fidalgo da casa do dito senhor e por ele foi dito que era verdade que o dito Duarte de Camões que presente estava fora tutor de sua dona Francisca de Castro sua molher e sobrinha dele Duarte de Camões filha de António Vaz de Camões e de dona Isabel de Castro sua mulher que santa glória hajam [desde?] o tempo do falecimento da dita dona Isabel por a qual fora ele dito dom Martinho tomar a conta a ele dito Duarte de Camões da fazenda da dita dona Francisca sua mulher assim dos bens móveis como de raiz rendimentos deles prata ouro jóias e mais coisas contidas nas partilhas dos ditos seus pai e mãe a qual conta é escrita por Afonso Gomes de Araújo escrivão dos orfãos desta cidade […] e uma sentença escrita em pergaminho que Lopo Vaz de Camões que deus tem houve contra Rodrigo Cabral sobre a serra de São Bartolomeu em a quall Luis Vaz de Camões também tem sua parte e mais a cédula de testamento da dita dona Isabel de Castro […]
Será este Luís Vaz de Camões o Luis de Camões poeta ou estaremos perante mais um caso de homonímia numa família em que a semelhança dos nomes tantas vezes tem sido motivo de embaraço para genealogistas e outros estudiosos? Recordemos, a este propósito, que de um Luís de Camões, padrinho de um casamento celebrado na igreja de Santo Antão, aos 6 de Maio de 1576, deu já notícia o camonista eborense António Francisco Barata em opúsculo publicado em 1882, com o título Luiz de Camões em Évora no anno de 1576 e que, por outro lado, a presença do autor em Évora tem sido proposta repetidamente avançada.
Ora, recorrendo ao nobiliário de Felgueiras Gayo e percorrendo a descendência de Vasco Pires de Camões, verifica-se ter sido o poeta o primeiro daqueles Camões a usar o nome de Luis que, nas gerações imediatas, viria ser reiterado em Luis Álvares ou Gonçalves de Camões, irmão da esposa de D. Martinho de Távora, falecido em Alcácer Quibir, e outro Luis Gonçalves de Camões, filho de Duarte de Camões da Câmara e de D. Isabel Lobo, não identificáveis com o filho de Simão Vaz, seu contemporâneo. Existia, ainda, um outro Luis, não referido expressamente na genealogia em questão, dado que teve o nome alterado para Gonçalo Vaz de Camões, por disposição testamentária de seu pai. Não cremos, porém, dadas as circunstâncias do seu nascimento que, enquanto Luis, tivesse usado dos apelidos paternos com que na Índia ficou conhecido.
A propriedade na posse de Luís Vaz de Camões será, muito provavelmente, a serra de S. Bartolomeu, situada na freguesia da Casa Branca do concelho de Sousel, a curta distância da herdade do Álamo, em tempos também chamado dos Castros, onde se erguem as ruínas de uma edificação, ainda hoje conhecida pelo nome de Torre de Camões. Esta herdade onde a permanência de alguns parentes do poeta é detectável desde 1541 encontrava-se, em princípios de seiscentos, já dividida em duas partes, uma pertencente a António Vaz de Camões, marido de D. Francisca da Silveira e sobrinho da D. Francisca de Castro, acima, e outra a Luis Gonçalves de Camões, filho de Duarte de Camões da Câmara e de D. Isabel Lobo.
Parece, assim, a fazer fé na genealogia apontada que, como outras, vale o que vale que, por exclusão de partes e por dedução dos factos patrimoniais, o Luis Vaz de Camões mencionado na escritura do tabelião Fernão d`Arco será susceptível de identificação com o poeta, o que confirmaria a hipótese, por vezes contestada, da sua filiação no ramo dos Camões de Évora, obrigando, por outro lado, a rever a tão romântica visão do poeta sem meios de fortuna… Porém, em matéria em que as nuvens da fantasia têm obscurecido tanto a luz da verdade histórica, convém usar de cautela para não as engrossar ainda mais até que outros elementos que, certamente, haverá ainda por revelar possam esclarecer definitivamente a tão incómoda questão da biografia do homem que cantou uma nação que persiste em nada saber dele.
Fernando Correia Pina
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