António Martinó de Azevedo Coutinho
Tintin no Congo - eis uma proposta interessante, a de tentar saber, pelos indícios possíveis, como Tintin é interpretado no Congo, antes e depois da presente polémica.
Conhecemos, como dado muito significativo, o facto de num momento delicado ter sido precisamente na República Democrática do Congo que despertou um inequívoco sinal de tolerância -inteligente, culto e descomplexado- apto a resolver o receoso impasse que a casa editora europeia entretanto alimentara quanto ao relançamento do álbum há muito esgotado. Convém realçar o acontecimento, pela sábia tomada de posição de Clément Vidibio, um considerado jornalista congolês infelizmente já desaparecido, na revista Zaïre, quando em 1969 foi aí decidido publicar a “BD maldita”. Para além do que atrás já ficou transcrito, é oportuno recordar a propósito outras palavras de C. Vidibio: “Os homens bons são sobretudo congoleses e Tintin, o generoso, luta contra o mal encarnado por um mau Branco.” (...) “Seria injusto separar o Congo deste jovem herói cuja ternura pelo nosso país não é preciso demonstrar.”
Um testemunho autorizado, pelo conhecimento privilegiado que possui, é o do desenhador Barly Baruti, provavelmente o mais conhecido e apreciado criador congolês de BD da actualidade. Nome destacado na escola nacional da sua especialidade, ele viveu a rara oportunidade de estagiar em Bruxelas no atelier de Hergé, no princípio dos anos 80, para aí apreender os segredos do estilo “linha clara”. Ele declarou muito recentemente: “Hoje, este álbum pode chocar, é verdade. Mas Tintin no Congo não foi concebido para lançar as pessoas umas contra as outras. Fiz um estágio nos Estúdios Hergé no princípio dos anos 1980. Pude aí consultar a documentação que o autor utilizou; revistas e livros que louvavam os méritos da Bélgica colonial. É preciso recordar que este álbum é uma página da história comum da Bélgica e do Congo. É neste sentido que devemos lê-lo e compreender o seu sentido crítico. Tintin no Congo exige lucidez. Convida o leitor a compreender as coisas em relação àquele período. Não é um livro colonialista. É um livro paternalista, porque o paternalismo estava no espírito desses tempos. Não há motivos para o queimar!”
O desenhador congolês quis mesmo comentar uma recente visita efectuada por Alberto II da Bélgica à República Democrática do Congo, em Julho de 2010, a quando das comemorações dos 50 Anos da Independência deste país. E disse a tal pretexto: “Existem muitos encontros frustrados entre a Bélgica e o Congo no plano histórico. Isso faz com que as pessoas se interessem por tudo o que nos liga, como é o caso de Tintin no Congo. Neste contexto, ele é um símbolo comum ao qual tanto os Belgas como os Congoleses podem recorrer.”
Palavras serenas e simples que definem o fenómeno, sem paixão nem complexos, antes com um realismo que parece faltar a outros conterrâneos do desenhador...
Uma visita ao Congo, ainda que apenas virtual, pode revelar-nos ostensivas demonstrações públicas do apreço de que, em termos populares, a figura de Tintin continua a gozar.
Bastam-nos dois distintos mas complementares exemplos. Um consiste nas imagens do herói pintadas em murais ou representadas em efígie, tanto em paredes como em jardins.
Nos restos de um antigo comboio turístico, como na fachada de um bar, na parede de um parque infantil como num cuidado relvado, numa ilustração pintada a acrílico como na inscrição publicitária pública relativa a uma companhia petrolífera (esta patente na vizinha Angola, atenção!), aqui ficam evidentes alguns pormenores da inegável presença de um herói querido, na memória colectiva dos que o não esqueceram.
O outro exemplo, mais pragmático, conduz-nos a um capítulo com real significado económico, na área do artesanato congolês. Para além das peças clássicas, de grande qualidade estética radicada numa tradição secular, algumas oficinas de artesanato, em Kinshasa e noutras cidades congolesas, produzem efígies de Tintin, na sua maior parte inspiradas no álbum em apreço. O Ford T e o cadeirão de baloiço, com o herói neles sentado, são os temas mais frequentes. O testemunho dos próprios artesãos é inequívoco sobre o interesse despertado por este específico sector da produção local, com grande procura por parte dos turistas, sobretudo dos belgas e outros europeus. Como Baruti sintetizou, com rara oportunidade, Tintin continua e continuará como um comum símbolo de unidade, sem qualquer vocação para divisionismos...
É possível encontrar esta simbologia comum também sob a chancela oficial. Neste campo, o mais significativo evento consistiu numa emissão conjunta de selos, validando pela filatelia um entendimento do mais alto nível entre a Bélgica e a República Democrática do Congo.
Em 2001, numa emissão conjunta dos dois países, impressa em Malines, foi lançada uma série de selos comemorativa dos 70 anos da aparição do álbum Tintin no Congo. Os selos, com dois motivos e dois valores, são:
• Capa do álbum – com taxas de 0,84 do euro na Bélgica e de 461 francos congoleses na R.D.C.;
• Tintin colonial (reprodução parcial de um extra-texto de uma edição do álbum) – com taxas de 0,42 do euro na Bélgica e de 190 francos congoleses na R.D.C.
Para além desta emissão conjunta, destaque-se a aposição de um carimbo especial, com dois motivos complementares:
• 2800 Mechelen 31-12-2001 (Bélgica) – com Milou atrás de arbustos (duma vinheta do álbum);
• Kinshasa 31-12-2001 (R.D.C.) – com Tintin atrás de arbustos (duma vinheta do álbum).
Postais alusivos, para corresponderem a tradições filatélicas alusivas a este tipo de emissões (“máximo postal” e outras), foram também disponibilizados, constituindo hoje peças muito apreciadas e como tal devidamente valorizadas pelos coleccionadores.
Recentemente, mais um marco decisivo foi lançado no universo da comunicação, tendo como tema essencial Tintin au Congo de Papa. Trata-se de um interessante e oportuno álbum, organizado pelo jornalista belga Daniel Couvreur, de Le Soir, com a contribuição do nosso já conhecido Alain De Kuyssche. Numa edição inédita da Moulinsart, esta obra foi disponibilizada com o jornal Le Soir do dia 30 de Junho de 2010, constando de um elaborado conjunto -em texto e imagem- de depoimentos actuais e da curiosa recensão das fontes originais, de 1930.
Constituindo ainda uma sagaz e competente resposta aos argumentos do senhor Bienvenu, a obra veio trazer para a liça uma colectânea de rigorosas provas histórico-culturais de elevado nível, que desmontam com inatacável vigor algumas aleivosias em voga.
Tintin (está) no Congo? Sim, e para sempre!
António Martinó de Azevedo Coutinho
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