António Martinó de Azevedo Coutinho
Tintin no Congo é uma banda desenhada. Por vezes, no entusiasmo de uma análise ou na paixão de uma crítica, parece perderem-se, um pouco, os limites desta realidade.
Quando Hergé a criou “por encomenda” em 1930, produziu, isolado, esse conto ilustrado para crianças, nos domínios de uma modalidade que ainda dava, na Europa, alguns dos seus passos pioneiros. Depois, sobretudo devido à mudança das mentalidades, o seu trabalho começou a ser olhado de outra maneira, tornado adulto, considerado cheio de preconceitos e de objectivos que nunca teve. A interpretação daquilo que foi, e é, uma simples história ganhou contornos dotados de dimensões apocalípticas.
Quando Hergé a criou “por encomenda” em 1930, produziu, isolado, esse conto ilustrado para crianças, nos domínios de uma modalidade que ainda dava, na Europa, alguns dos seus passos pioneiros. Depois, sobretudo devido à mudança das mentalidades, o seu trabalho começou a ser olhado de outra maneira, tornado adulto, considerado cheio de preconceitos e de objectivos que nunca teve. A interpretação daquilo que foi, e é, uma simples história ganhou contornos dotados de dimensões apocalípticas.
Tentemos anular os preconceitos, isolar os mitos e recuar à possibilidade, singela, de ler Tintin no Congo com olhos isentos de todas as cargas emocionais que derivam das posições a que entretanto fomos aderindo, quer no louvor quer na condenação -por vezes radicais- perante um mesmo e vulgar objecto de comunicação.
Qualquer manual de linguística nos diz que uma narrativa conta com personagens, que desempenham certos papéis num determinado contexto espacial e temporal. A trama romanesca, da responsabilidade do autor, provoca o desenvolvimento da acção durante o continuum narrativo, até se atingir, normalmente, o seu termo. Nós, leitores, somos convidados, ou desafiados, a partilhar (e a interpretar!) a história/proposta.
Tintin e Milou, dois inseparáveis companheiros de jornada, são os protagonistas desta aventura, vivida num lugar exótico, algures na África misteriosa, chamado Congo. Partem para lá, num paquete, e continuam depois em terra firme uma saga que já a bordo se adivinhara.
Se tivermos em conta as definições clássicas, escolares, podemos classificar os intervenientes na febril história a seguir desenrolada em várias categorias, conforme a sua espécie e o seu grau de participação.
Os cenários privilegiados são a savana e a selva, pois as cenas decorrridas em ambiente urbano são pouco significativas e muito esquemáticas.
O estilo da linha clara, de que Hergé é considerado um percursor e um exímio praticante, não deve ser em absoluto aqui valorizado, pois apenas influenciará a versão colorida e redesenhada da história, mais de uma década e meia após a sua primeira publicação. De qualquer forma, facilmente reconheceremos que os cenários onde se desenvolve a aventura congolesa são apenas modelos, quase minimalistas.
Entre os elementos do contexto, com função actuante na narrativa, são pouco significativos os que integram a orografia ou os factores atmosféricos propriamente ditos. A hidrografia assume bastante importância narrativa (e também as marés), assim como a arborização (sobretudo a árvore da borracha). A sucessão do dia e da noite desempenha um papel apreciável, mais valorizado na versão original, em dois episódios. Nunca há qualquer intervenção de chuvas tropicais, de trovoadas e de outros elementos meteorológicos frequentes na região, assim como o capim ou o mato dos cobertos vegetais praticamente não existe...
Os objectos singulares ditos inanimados são de extrema importância no desenrolar da história. Basta recordar, sem esgotar a lista, os papéis da espingarda, não apenas como arma mas sobretudo como simples estaca, que fixa as mandíbulas do crocodilo; dos cocos que atingem Tom; das máquinas de filmar e projectar, de registar e reproduzir sons; do electro-imã; da esponja; da lupa e do espelho; da liteira (por duas vezes, óbvio sinal do colonialismo); do marfim e do látex... Os próprios diamantes, embora apenas virtualmente referidos, são igualmente importantes, completando a “trindade” económica então mais rentável, na exploração das riquezas naturais do Congo. Falta referir a dinamite (alusão ao símbolo de boula matari!?)...
Neste campo, embora como veículos -portanto móveis-, lembremos o paquete, o Ford T, o comboio, as pirogas e o avião.
Como objectos colectivos, de natureza organizacional, administrativa, cívica, política, até mesmo corporativa, podemos evocar os mais diversos: o “sindicato” dos jornalistas, abundantemente representado; a organização tribal -incluindo as hierarquias, a linguagem, a feitiçaria e a idolatria, o sector militar, a indumentária-; a caça e o safari; a técnica (sobretudo como instrumento de colonização); a doença e o medicamento; as máscaras -de macaco, de Tom e de girafa- usadas como sinal de superioridade intelectual actuante; a sociedade secreta (os Aniotas); a missão católica (e a sua vocação civilizacional); os pigmeus (enquanto tribo isolada, embora “ligada” pela música - a banda de jazz); o alcoolismo (sintoma de fraqueza, importado); a canção dos barqueiros (sinal de cultura própría); os gangs internacionais; a força policial...
Quanto a figuras narrativas susceptíveis de algum destaque entre a ficção inventada pela prodigiosa capacidade de Hergé, podemos também registá-las.
Aqui, torna-se mais lógico apreciar a organização narrativa das 62 páginas (ou pranchas) do álbum, a partir da reformulação de 1946. Assim, analisando as vinhetas finais das 64 páginas, verificamos que, em 19 destas (31%), a acção continua normalmente; em 16 outras (25%), o episódio em curso pode considerar-se concluído; nas restantes 27 (44%), o efeito procurado é o de suspense, o que marca e mantém um ritmo de inegável interesse com vistas à página imediata... O álbum, a este nível, marca desde logo -muito mais do que Tintin no País dos Sovietes- a génese da fabulosa capacidade de Hergé como mestre narrador na banda desenhada.
Para além das sequências ditas normais, ou expectáveis, no enredo narrativo, acontecem as situações onde intervêm outros factores, como o azar ou o acaso, o ilógico ou a coincidência, para citar apenas estas figuras, aliás as mais frequentes.
Assim, há os inesperados choques de Milou, aquele que deixa Tintin inconsciente na cena dos crocodilos, ou o que produz a rotura da cauda do leão; a oportuna serpente que ataca o feiticeiro; o macaco desastrado que abate o elefante com um certeiro (!?) tiro na fronte (de noite ou em pleno dia, conforme as versões); o providencial galho que evita a queda fatal de Tintin na torrente; o colaborante hipopótamo que amortece outra queda do herói, enquanto Tom, o mau, acaba por morrer; finalmente, a quase mágica aparição do avião salvador, quando tudo já parecia perdido...
António Martinó de Azevedo Coutinho
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