\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

António Martinó de Azevedo Coutinho

DOIS POETAS DE NOME JOSÉ:
DURO E RÉGIO
(II)
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Podemos facilmente constatar que a memória de José Duro foi quase sempre aqui respeitada e até cultivada, desde que desprezemos, por excepcional, o recente vandalismo “oficial” cometido contra o seu memorial, na Corredoura.
Bastará consultar o volume José Duro - Textos Dispersos, excelentemente organizado por António Ventura, ou o número 2 da Revista Plátano, dirigida por Mário Casa Nova Martins, onde se contém um vasto “dossier” alusivo, para nos apercebermos do culto admirativo entre nós praticado em relação ao malogrado autor do Fel. Se quisermos dispôr de uma informação mais próxima e quase quotidiana sobre o tema, que folheemos então as páginas da nossa imprensa local, sobretudo a dos primeiros anos do passado século, abundante em referências ao poeta portalegrense.
Que ele nunca foi esquecido ao longo dos anos mostra-o inequivocamente a iniciativa da academia local, liderada pelo Dr. Galiano Tavares, que culminou, em 23 de Julho de 1944, na solene e sentida inauguração do aludido memorial. Entretanto, muitos vultos do jornalismo e da literatura nacionais, como Albino Forjaz de Sampaio, André Brun, Augusto de Castro, Irene Lisboa, João Gaspar Simões, Mayer Garção, Óscar Lopes, Silva Tavares, Urbano Tavares Rodrigues e outros, escreveram sobre José Duro. Em Portalegre, para além dos autores atrás citados, devemos juntar-lhes Ângelo Monteiro, Armando Neves, Casimiro Mourato, Francisco Sequeira, José de Andrade Sequeira, Luís Gomes e outros.
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Local de O Distrito de Portalegre (5 de Outubro de 1930)
sobre uma efeméride de José Duro e gravura de João Carlos,
publicada em A Medicina na Literatura Portuguesa n.º 22 (1947)
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Quando, em 15 de Fevereiro de 1931, José Régio publica no número 8 do quinzenário portalegrense Alto Alentejo o artigo No Aniversário da Morte de um Poeta - José Duro, podemos afirmar que a escolha do tema se insere numa prática local corrente de evocação do poeta precocemente desaparecido. Com efeito, a 25 de Janeiro desse mesmo ano de 1931, apenas três semanas antes, O Distrito de Portalegre tinha inserido uma local sobre José Duro, que se transcreve:
José Duro
Ha trinta e dois anos que a morte no-lo arrebatou.
Filho de Portalegre, vive no coração de nós todos. Parecendo olvidado, o seu nome é sempre recordado com a mais viva saudade e a sua glória de Poeta mais nos deslumbra.
O Districto de Portalegre foi, talvez, o primeiro jornal que lhe rendeu as suas homenagens, e vai isto para 32 anos.
Como então, o nosso contributo de saudade e de admiração porque
O poeta nunca morre, embora seja agreste
A sua inspiração e tristes os seus versos!
Se é legítimo afirmá-lo sem qualquer intenção de diminuir, bem pelo contrário, a iniciativa de Régio, deverá dizer-se que esta simples peça jornalística terá fornecído um oportuno “mote” ao seu artigo. Basta confrontar-lhes o início e o final...
É notável o texto de Régio que, não o esqueçamos, era ainda um jovem que não tinha atingido os trinta anos de idade, mas que já detinha uma impressionante bagagem cultural e uma sólida prática na escrita de análise e crítica literária advinda sobretudo da sua experiência vivida nas andanças da revista presença.
Assim, o confronto da personalidade e obra de José Duro (1875-1899) com as de Gomes Leal (1848-1921), de Cesário Verde (1855-1886) e de António Nobre (1867-1900) apresenta-se à sensibilidade poética de Régio como lógica e quase inevitável, numa linha de indiscutível coerência cultural.
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Os poetas Gomes Leal, Cesário Verde e António Nobre
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Com efeito, se exceptuarmos Gomes Leal, que viveu mais de setenta anos apesar da miséria e da degradação moral e física advindas do alcoolismo, todos os restantes morreram muito jovens, precocemente abatidos pela tuberculose. A neurastenia, o sofrimento que revela sensações exteriores e sentimentos íntimos, a obsessão pela morte ou o permanente saudosismo são lugares comuns na obra de todos eles, apesar das particularidades que os distinguem.
E José Régio destaca com singular maestria tanto essas semelhanças quanto as diferenças, pelo que o texto patente no Alto Alentejo é exemplar na sua síntese, talvez algo dura e impiedosa, mas também carregada de avisos e de esperança.
Fisicamente frágil, Régio sentiria igualmente o temor da “peste branca” que o levaria, mais tarde, aos sanatórios. Teria esta indesejável e doentia “solidariedade” impelido o autor da Toada à explícita simpatia para com José Duro?
A tese de que o sofrimento sem remédio amplifica a sensibilidade e estimula a criatividade do paciente é quase eterna e não dispõe de respostas indiscutíveis. Terão os grandes criadores que experimentar esse mesmo fel que José Duro, António Nobre, Cesário Verde, Gomes Leal e o próprio José Régio provaram?
Antecipando a transcrição do notável artigo de Régio, e evocando aqui os seus “inspiradores” ciprestes no cemitério da Boavista, é interessante recordar, na íntegra, a quadra final, termo da obra máxima de José Duro:

Por isso irei sonhar debaixo de um cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre, embora seja agreste
A sua inspiração, e tristes os seus versos!
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O número 8 de Alto Alentejo (15 de Fevereiro de 1931)
insere o último dos textos de José Régio, sobre José Duro,
assim como a apresentação (ou “despedida”!?) daquele...
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NO ANIVERSÁRIO DA MORTE DE UM POETA
JOSÉ DURO
Passou no mês de Janeiro o aniversário da morte de um dos maiores poetas alentejanos. Que o nome de José Duro não deixe de ser aqui lembrado, e que o epíteto de “esquecido” deixe finalmente de lhe caber. Sobre o tempo em que Albino Forjaz de Sampaio culpava os contemporâneos de desconhecerem o autor do “Fel”, passaram anos fecundos: José Duro ainda não é conhecido daquele grande público neutro, ao qual pouco interessa um poeta, como poeta. Nunca o será, e nada perde com isso a sua memória. Os novos que o conheceram amam-no. E se há poeta que não basta admirar, mas que é preciso amar, esse é José Duro. Sem ter chegado, como artista, aonde chegaram António Nobre, Cesário Verde e Gomes Leal - poetas com os quais se aparenta por alguns aspectos da sua sensibilidade e do seu gosto - José Duro não lhes é inferior na sinceridade do sofrimento nem no poder de comunicação. E se António Nobre embala a sua dor com evocações de infância, sonhos de príncipe, narcisismos de megalómano ou deliciosos sorrisos de menino precoce; se Gomes Leal entretém a loucura que o espreita com esplêndidas quixotices de combativo e delirantes incursões no mundo da política, da filosofia, da sociologia, do ocultismo, da Fé; se Cesário opõe à vida a superior couraça do seu dandismo, e ilude os pressentimentos de uma alma hipersensível com a ilusão de um corpo sólido e o gosto de uma vida sadia - José Duro, esse, encontra-se cara a cara com a doença e a dor, sem quimeras nem amparos. Sonhos, teve-os. Sonhou o amor como todos os moços, e a glória como todos os poetas, Mas a consciência de possuir “uma alma de poeta e um pouco de talento” - só pode ser maior desgraça a quem vê a vida fugir-lhe sem lhe deixar tempo a realizar uma obra.
E que esperará do amor um homem que já não pode beijar uma criança, “porque ao seu lábio aflui o tóxico da tísica?” Assim os sonhos lhe divagam, mórbidos, à roda dos ciprestes, das loisas, das larvas, das podridões e das misérias. Se no “Fel” alvorecem, de quando em quando, reminiscências mais doces, breve a imaginação adoecida do poeta o arrasta de novo pelas escuridões onde vicejam as “Flores exóticas” e as “Flores malditas”. Como a um poeta é impossível não sonhar, ele sonha sempre mas a dentro do horizonte que o destino cada vez lhe estreita mais. De lá, desse círculo onde lhe parece que até Deus o odeia, a vida revela-se-lhe apenas uma estúpida amálgama de sofrimento e maldade. Mas não nos iludamos; Todo esse frenético pessimismo que no “Fel” se expande em gritos, em imprecações, em soluços e em brutalidades um pouco ingénuas para o gosto de hoje - não é senão a desesperada revolta de uma criança que ainda não viveu, e a quem já não deixamos viver. Nenhum poeta nasce propriamente pessimista, pois que todos nascem com o dom de conhecer a Beleza, fonte de Alegria.
Simplesmente, a sensibilidade e a imaginação de todos os verdadeiros poetas são demasiado vibráteis para que a vida os poupe; e assim tantos poetas se abandonam ao pessimismo.
O caso de José Duro não é uma excepção. Ele o confessa ou deixa entrever em tantos dos seus versos - Ele chora de se ver “tão outro”, e se julga o contrário daquilo que parece. Assim a sua bondade entreluz através das perversões da sua fantasia, assim a maldiçâo que ele atira à vida não é senão o seu último grito de vida. O que mais nos comove nas páginas lancinantes do “Fel” - é sentirmos bem que esse homem, que apela para a morte, maldiz a vida, se refugia no abandono, e já procura o amor nos antros “onde o amor é uma traição” - tem, no entanto, uma poderosa sede de viver, de amar, de ser feliz, de ser bom. Embora livro de um tísico, o “Fel” é a obra dum temperamento vibrante, ardente, e másculo. Opõe-se, pois, sob vários aspectos, a essoutro breviário de tísico - o “Só”. Por isso mesmo que no “Só” António Nobre femininamente se abraça à sua doença, e com ela se enfeita, e a canta com palavras penetrantes e ritmos langues, cuja graça tão pessoal insidiosamente nos enleia - o “Só” é um livro mais deliquescente e mais perigoso que o “Fel”. Depois de ler o “Só”, um adolescente impressionável quase deseja estar doente como aquele poeta que tão encantadoramente se chora. Pelo contrário, depois de se ler o “Fel”, o nosso implacável egoísmo de homens mais ou menos sãos alegra-se de nos sentirmos alheios a esse terrível círculo de doença, miséria e abandono em que o poeta se debate. E nesta diferença - mais importante do que parece - reside uma das principais originalidades de José Duro. No entanto, que a palavra alheios acima empregue não seja mal interpretada. José Duro não chegaria a ser poeta nem artista, se não houvera conseguido que nós sintamos o seu mal como nosso - ao menos enquanto o lemos.
Artista é aquele que sabe comunicar com o seu ser. Não basta sofrer, ou viver, ou sonhar, para se ser artista. É preciso dispôr-se dos meios de expressão e sugestão capazes de comunicar aos outros esses sofrimentos e esses sonhos, essa vida. Assim essa vida que foi a dum homem (e às vezes bem esquecido, bem miserável, bem louco) passa, por meio das cristalizações da Arte, a ser a de todos os homens. No “Fel” há desigualdades e hesitações, como em quase todos os primeiros livros de versos. Mas por nele, apesar dessas desigualdades, aliás fecundas, José Duro nos saber comunicar as suas visões e os seus sonhos, os seus delírios e as suas angústias; por no-las saber comunicar sem truques e sem astúcias, com uma espontaneidade, um capricho, uma vibração e uma ousadia que lhe marcam um lugar bem seu neste onde país onde - Deus louvado! - os poetas superabundam, - é que a fama do seu nome desmentirá a brevidade da sua vida. E o lôbrego verso que Dante escreveu na porta do inferno - Lasciate ogni speranza, voi che entrate - escolheu-o injustamente o desespero do poeta para o umbral do seu livro. Pois o seu livro é antes uma prova de que até das misérias da carne e das tormentas da alma se pode desentranhar beleza - quando se nasceu com certa Estrela na testa. Ele próprio o reconheceu também. Porque é de notar que esse livro estranho e brutal fecha com palavras de serenidade e de esperança:
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua inspiração e tristes os seus versos!
J. R.
Portalegre, Fevereiro de 2010
António Martinó de Azevedo Coutinho