\ A VOZ PORTALEGRENSE: Luís Filipe Meira

segunda-feira, novembro 02, 2009

Luís Filipe Meira

António Sérgio
(1950 – 2009)

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A Rádio é uma paixão, é uma das minhas paixões. Não sei se cheguei à música por causa da rádio, se à rádio por causa da música, nem isso é importante. O importante é a razão porque estou triste nesta tarde cinzenta do Dia de Todos os Santos.
Estou triste, e certamente que não estou sozinho nesta tristeza que me assola.
Estou triste porque soube há pouco que morreu António Sérgio, um dos meus ídolos de juventude. Um homem que me ensinou a ouvir e a escolher música. Um homem que privilegiou como poucos os ‘programas de autor’ na rádio.
António Sérgio marcou gerações de ouvintes e de radialistas. Passou pela Rádio Renascença, Rádio Comercial e XFM.
Há dois ou três anos foi despedido da Comercial, porque a sua forma de fazer rádio não se coadunava com o perfil da estação. Ainda bem porque foi a prova que não se tinha deixado formatar!
Então, o ‘povo da música’ levantou-se em armas, e a alternativa Radar FM contratou-o de imediato.
António Sérgio era uma referência, e por isso ficará para sempre na memória de radialistas e melómanos.
Em 2008 cumpriu 40 anos a fazer rádio. Curiosamente partiu no dia em que normalmente homenageamos os nossos mortos. Ainda bem, assim, e enquanto por aqui anda, vou homenageá-lo como faço aos que me são Queridos; com Respeito e Saudade.
Luís Filipe Meira
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Transcreve-se a seguir, com a devida vénia, o texto que Miguel Esteves Cardoso assinou no jornal Público, a propósito da despedida de Sérgio da Rádio Comercial.

António Sérgio nunca esteve bem em qualquer estação de rádio. Mesmo quando a rádio era rádio. Porque António Sérgio é uma estação de rádio andante e uma estação não cabe noutra estação. Para mais, é uma estação hostil às outras, contra as quais exerce uma guerrilha permanente. Mais do que meramente ingovernável – ou até uma oposição paciente – António Sérgio e a indissociável Ana Cristina Ferrão são um governo em exílio permanente. E com uma imperdoável agravante: é assim que gostam. E é nisso que insistem teimosamente. É lindo.
Os espanhóis da Prisa fizeram bem em despedi-lo. Estando livres de gratidão, memória ou preocupações da representação da boa música em Portugal, tiveram a coragem que faltou aos antecessores portugueses, ainda demasiado constrangidos pelo reconhecimento e pelo medo da superioridade musical de António Sérgio.
É importante frisar que não é de agora a tanga do mercado nem o fado do fim da rádio. António Sérgio só durou até 2007 porque se recusou a ir embora. Desde os anos 70 que agentes sorrateiros se agacham atrás dele, tentando puxar-lhe a cadeira, a ver se cai. Mas o homem sempre esteve ocupado de mais para reparar. Fincou os pés, sacou dos discos e fez o que sempre fez: o que lhe estava na real gana. De resto o desprezo pode ser a mais bela das distracções.
Ajudou também o facto de António Sérgio ser o melhor divulgador de música popular do nosso tempo – John Peel era magnífico mas tinha lapsos de gosto. Muito se perdoa a quem escolhe música boa tão bem, durante tanto tempo, com tanta arte e tanta inteligência.
A música de António Sérgio é a melhor e está tudo dito.
Claro que é preciso gostar de boa música – e de querer descobrir boa música nova – para perceber a grandeza e a utilidade brutal de António Sérgio. A nostalgia é um argumento inimigo. Hoje há muito mais música boa e muito mais música nova do que nos anos 80 ou 60. Mas continua a ser 0,1% de toda a música que se faz.
Essa proporção continua a mesma. O que mudou é a atitude geral da população. Dantes, a ignorância inibia e produzia falsos respeitos por quem se suspeitava "ter conhecimentos". Havia seguidismos acéfalos e dependências paralisantes, tudo exacerbado pelas dificuldades e desigualdades de acesso à música. Havia mestres: era inevitável. ("Mestres" no mau sentido, de professorzinhos de província.) Na rádio as directrizes dos mestres eram obviamente inseparáveis do acesso à música para que nos dirigiam.
Não era bom – até porque os mestres eram mais do que muitos e geralmente pomposos e autoritários, para não falar nos vendidos. Mas é inegável que, entre os pouquíssimos capazes de descobrir e defender música boa, o maior era e é António Sérgio. Por definição é um anti-mestre, desinteressado do tráfego de influências e da concordância dos seguidores.
Digo mal desse tempo – que era também o meu – para poder absolvê-lo do maior defeito dos tempos de hoje, apesar de serem musicalmente mais vastos e empolgantes: o relativismo ignorante. É ele que acaba por explicar a atmosfera que leva à lata de despedir António Sérgio.
Segundo o relativismo ignorante, ninguém pode dizer se uma música é boa ou não. É tudo uma questão de gosto. Depende das circunstâncias. Depende da idade. Às vezes sabe bem uma coisa que, noutra altura, sabe mal. Cada um é como é e aquilo que agrada a um... perdoem-me se me fico por aqui no blá blá blá.
Tem ou não tem graça como esta atitude coincide exactamente com a conveniência comercialista do cliente ter sempre razão; que os números não mentem; que os ouvintes é que sabem; que os anunciantes é que pagam e quem somos nós para dizer que não está bem assim?
O pior é que esta humildade é uma subserviência e este deixar decidir, este respeito pelos gostos dos outros, é uma gulosa cobardia. Que vai acabar mal – porque quanto mais a rádio se recusa a ser minoritária mais as minorias vão fugir dela. O problema da massificação é que as massas não existem para depois virem agradecer o que se fez por elas.
A apologia do tudo-vale confunde-se sempre com a santificação da ignorância e daí até dizer que António Sérgio sabe escolher música tão bem como eu vai um passinho. A verdade é que sabe muito mais. Escolhe muito melhor. Arrisca mais e engana-se menos. É simples: António Sérgio sabe mais de música popular – no sentido de saber escolhê-la, que é o único que interessa – do que qualquer outra pessoa.
É por haver tanta música hoje – e tanto acesso – que a sabedoria selectiva de António Sérgio é mais valiosa e necessária do que nos tempos ditos áureos em que, verdade se diga, não era assim tão difícil separar o trigo do joio. A música de António Sérgio é como a boa música: não se deixa interromper. É ele que não deixa. O homem sabe o que vale e o que tem de fazer. É escusado atravessarem-se no caminho dele. O que menos interessa é a estação de rádio.
A música de António Sérgio é a melhor e está tudo dito.
Se calhar foi isso que custou à Rádio Comercial engolir. Não soube suportar o desprezo, talvez por saber que o merecia. Às vezes, quando existe uma pontinha de vergonha, é desagradável ter, mesmo ali ao lado, um exemplo tão claro de dignidade. De estatura. Desmotiva muito. Faz lembrar coisas que conviria esquecer, que atrapalham a marcha para a capitulação final.
Vai ter sorte a estação de rádio onde voltará a tocar a música de António Sérgio. Mas que fique desde já avisada que escusa de tentar desviar a caminhada do bicho. Em vão agitará no corredor papéis com números de audiências ou os amoques de focus groups. É escusado implorar-lhe que oiça "sem preconceitos" os CD de merda que vos interessa impingir. Não vale a pena atirar-lhe com a história dos tempos terem mudado.
Os tempos sim; a rádio outrossim; mas a urgência de descobrir e defender a música boa é a mesma de sempre. Ou maior ainda, dada a massificação da própria desistência de escolher e divulgar a música que vale a pena.
E não há ninguém que saiba fazer isso melhor do que António Sérgio. Que não faz outra coisa desde que faz rádio. Que não fará outra, mesmo que tentem impedi-lo. Para nosso bem – e, sobretudo, para bem de quem ainda não se sabe quem.
Ou então não – nem isso é preciso. A música de António Sérgio é a melhor e está tudo dito. Haja pressa em poder ouvi-la e saber dela outra vez.
Público, 17.set.2007
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Rotação (entre 1977-1980): Foi o seu primeiro programa de autor, ainda na Rádio Renascença. Foi através deste programa que ajudou a lançar nomes cimeiros da música portuguesa, incluindo os Xutos&Pontapés.
Rolls Rock: o primeiro programa que fez na Rádio Comercial, que na altura ainda dava pelo nome de RDP – Canal 4. O conceito por detrás do programa - nas palavras de João David Nunes - era ser “uma coisa especial, edições muito específicas e muito boas”.
Som da Frente (1982 -1993): Como o próprio nome indica, tinha como missão estar na linha da frente das novidades; trazer até aos ouvintes portugueses o que de novo se fazia em Portugal e no Mundo e estar na vanguarda das novas sonoridades.
Lança-Chamas: programa dedicado à chamada música pesada e ao heavy metal.
Loiras, Ruivas ou Morenas: programa realizado pela mulher de António Sérgio, Ana Cristina Ferrão, em que António Sérgio passava apenas música interpretada por mulheres. De Ellis Regina a Janis Joplin.
Grande Delta: Entre 1993 e 1997, durante o interregno que o levou à XFM.
Hora do Lobo (1997-2007): O programa esteve no ar dez anos, entre a Comercial e a Best Rock FM, e dedicava-se a dar a conhecer as franjas menos conhecidas do pop-rock. Foi cancelado porque tinha deixado (segundo a direcção assumida pelo grupo Prisa) de se enquadrar na grelha. O fim do programa originou reacções e protestos. “Serviu como uma espécie de resumo de carreira. Porque o António Sérgio sempre foi um lobo solitário, mas de olhar penetrante”, define João David Nunes.
Viriato 25: O seu mais recente programa, na Radar FM.