\ A VOZ PORTALEGRENSE: Mário de Sá-Carneiro

sábado, maio 19, 2007

Mário de Sá-Carneiro

O meu Ilustre Amigo JV lembrou-me um excerto deste Poema de Mário de Sá-Carneiro.
É justo trazê-lo na íntegra, até como sinal de gratidão a JV.
Mário
.
Serradura
.
A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
- O zumbido de um moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas -
Ou qualquer coisa entre tantas
De uma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra uma porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
-Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que não era fácil – partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel.

A gritar «Viva a Alemanha»…
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade…

Vou deixá-la – dcidido –
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.
Paris, Setembro de 1915
in, Mário de Sá-Carneiro - POESIAS - p.131