Crónica
Eurico de Barros
jornalista
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Todos nós costumamos vociferar contra os políticos, dizer que, se lá estivéssemos em vez deles, fazíamos, dizíamos e acontecíamos. Mas nunca mexemos um dedo. Em 1989, o cidadão brasileiro Enéas Ferreira Carneiro, instado pela mulher, farta de ouvir o marido falar mal dos políticos, do Governo e da situação do país, juntou o gesto ao verbo e entrou na política.
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Todos nós costumamos vociferar contra os políticos, dizer que, se lá estivéssemos em vez deles, fazíamos, dizíamos e acontecíamos. Mas nunca mexemos um dedo. Em 1989, o cidadão brasileiro Enéas Ferreira Carneiro, instado pela mulher, farta de ouvir o marido falar mal dos políticos, do Governo e da situação do país, juntou o gesto ao verbo e entrou na política.
Médico e professor de Cardiologia, autor de obras sobre variados temas científicos, conservador de carteirinha e patriota até à apoplexia, Enéas decidiu começar do zero. Em vez de se meter num dos partidos existentes, fundou o Prona (Partido da Reedificação da Ordem Nacional) e começou a usar os 17 segundos de tempo de antena gratuito que lhe eram concedidos, pelo seu partido não ter assento no Congresso.
E foi na televisão que Enéas se revelou ao Brasil em todo o seu castiço e indignado esplendor, com as longas barbas negras e a careca lustrosa, impôs o seu "jeito maluco" e criou a frase que o tornou famoso, "Meu nome é Enéas!", berrada a rematar os coloridos e contundentes discursos em que vociferava contra a "escumalha governante" ou a colonização do Brasil pelo "sistema financeiro internacional", e pedia o fabrico da bomba atómica com "fins pacíficos", para que o país fosse mais respeitado no estrangeiro.
Individualista ferrenho, sinceramente anti-sistema, espelho dos valores que defendia e dono de brilhante currículo intelectual e profissional (foi o melhor aluno em todas as etapas da sua vida escolar e primeiro classificado em todos os concursos públicos que fez), Enéas era naturalmente encarado pelos políticos profissionais como um excêntrico folclórico. "É perfeitamente natural e compreensível, acontece toda a vez que surge alguém contrário a um sistema estabelecido", comentou.
Mas o eleitorado viu algo de diferente e genuíno neste candidato marginal e crónico à presidência do Brasil, porque em 1994, com pouco mais de um minuto na televisão, Enéas ficou em terceiro lugar na eleição presidencial, só atrás de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva. E em 2002 foi eleito deputado por S. Paulo com 1 573 112 votos: a maior votação da história brasileira.
Esta maré alta permitiu-lhe levar para o Congresso mais cinco candidatos do Prona que tinham tido votações residuais. A classe política, e os caciques partidários em particular, ficaram com nervoso miudinho e começaram logo a falar em alterar a legislação eleitoral, para impedir a presença de "intrusos" como estes no Congresso.
Enéas Ferreira Carneiro deixou de vez a política e este mundo no passado domingo. Morreu, com 68 anos, no Rio de Janeiro, vítima de leucemia. Foi um dos poucos políticos do Brasil que não teve papas na língua, que nunca recorreu a marqueteiros, que manteve até ao fim o seu discurso desassombrado e o seu estilo enfático e irado, e a defesa blindada e articulada dos seus valores e opiniões, por mais insólitas ou contra a corrente que fossem.
O tratamento a que se submeteu para combater a leucemia fez-lhe desaparecer a característica barba negra. Sem problema. No final dos tempos de antena, passou a dizer: "Com barba ou sem barba, eu sou o Enéas!" E sempre o fez saber, alto e bom som.
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