Corto Maltese
PASSEANDO PELOS MARES DO SUL
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Corto Maltese recebe um papel secundário na sua estreia literária, pois o verdadeiro herói da «Balada do Mar Salgado» é o povo da Polinésia
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POR Gonçalo Cadilhe
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TEXTO E FOTOGRAFIAS
.Tentei já algumas vezes, o álbum na mão direita e os mapas na mão esquerda, tentar compreender a geografia da Balada do Mar Salgado. Não é compreensível, porque é uma geografia ficcionada. E uma invenção baseada em espaços reais. Ainda bem - os lugares por onde navega a imaginação de Hugo Pratt não cabem na dimensão deste mundo.
Quando Pratt começou a desenhar a Balada ainda não tinha bem a noção de qual seria a personagem principal da obra. Corto Maltese era nas primeiras páginas apenas um protagonista secundário, um esboço de herói. Ao longo do livro, até a sua expressão se vai definindo.
Claramente a mão do desenhador procura de página em página uma face convincente e, num processo muito mais amploe profundo, uma imagem e uma personalidade definitiva para o seu marinheiro.
Quanto a romance de aventuras, a Balada do Mar Salgado é antes de mais isso mesmo: um processo de criação, um «work in progress». Corto Maltese não possui ainda o carisma infalível que mais tarde o iria tornar o centro de todas as atenções, em títulos como As Célticas, ou Fábula de Veneza. Por isso, neste teatro dos espaços infinitos o palco é mais importante que a trama ou a espessura psicológica dos actores. Agrada-me ter A Balada do Mar Salgado não como uma hesitante aventura de Corto Maltese, mas sim como uma heróica homenagem ao imenso Oceano Pacífico, a todos os que nele navegaram, aos muitos que nele se perderam.
Nesta cartografia emocional, onde as distâncias e os tempos de navegação não fazem qualquer sentido, onde os arquipélagos se mexem na lógica do enredo como peças de xadrez no tabuleiro do autor, onde etnias que distam milhares de quilómetros entre si aparecem a conviver descontraidamente na mesma ilha, em tudo isto, não importa a veracidade. Importa a nomeação. A Balada é uma coreográfica cerimónia de entrega de prémios e reconhecimentos à história, à sociologia e às civilizações do Pacífico.
Não por acaso, Rasputine anda a ler o diário da navegação de Louis-Antoine Bouganville, Viagem à Volta do Mundo. Bouganville procurava a misteriosa Terra Australis Incógnita, a massa continental que, segundo as teorias medievais, devia existir algures no hemisfério sul para contrabalançar o peso da Eurásia. Durante a expedição, atracou no Taiti - o segundo europeu a fazê-lo, dois anos depois de Wallis. E, mais uma vez, os marinheiros poderiam, digamos, «apreciar» a hospitalidade das taitianas. Publicada em 1771, a Viagem à Volta do Mundo teve uma enorme notoriedade e moldou no imaginário europeu o mito do Taiti como paraíso terrestre. Rousseau e amigos viram em tudo isto a confirmação das suas teorias sobre os efeitos nefastos da civilização na inocência do «bom selvagem». O livro de Bouganville é, portanto, uma obra central na história do Pacífico – como tal, faz parte das «nominations» que a Balada chama ao palco das homenagens.
No palco, grande destaque também para os trajes, os penteados, as habitações, as tatuagens e outros símbolos culturais da mais impressionante classe de navegadores que a Humanidade conheceu: os polinésios. Oriundos da Indochina, começaram a navegar o Pacífico há talvez quatro mil anos. Primeiro aventurando-se nas ilhas dos arquipélagos «internos» do mar do sul da China, depois tentando navegação já de largo fôlego, os polinésios conseguiram ocupar um território duas vezes superior ao dos Estados Unidos. Em 1300 a.C. as ilhas de Fiji e de Tonga encontravam-se solidamente habitadas e, ao longo do primeiro milénio da nossa era, seria a vez da Samoa, do Taiti, do Havai, da Nova Zelândia e por fim da Ilha da Páscoa, o pedacinho de terra mais isolado do mundo.
Como conseguiram estas populações analfabetas e com arcaicos materiais e métodos de navegação atravessar repetidas vezes o oceano mais extenso do Planeta e descobrir ilhas minúsculas com uma precisão infalível? Com um conhecimento admirável da posição das estrelas das direcções das correntes e dos ventos, da forma das nuvens, do movimento das ondas, da temperatura das águas, dos cheiros do ar. E com a ajuda das aves e dos peixes do mar com quem, segundo as lendas, sabiam dialogar. Em última análise, é essa sabedoria quase sobre-humana que A Balada do Mar Salgado celebra.
Por isso, Corto diz ao jovem maori Tarao: «És o melhor navegador que eu conheça. Por isso, as páginas mais comoventes e delicadas do livro são as da navegação de Tarao pelo Pacífico, numa corrida contra o tempo a tentar chegar a Buranea, onde se encontra a armada neozelandesa, para lhes entregar Pandora, que jaz quase moribunda na embarcação. A holandesa Pandora Groosvenore é a magnífica menina-mulher à roda da qual dançam todos os homens desta história, e talvez a sua personagem principal, se é que existe uma.
E é Pandora quem explica aos oficiais neozelandeses como conseguiram chegar à ilha: Tarao cantava canções que encantaram o amigo tubarão e o convenceram a indicar a rota para Buranea. Naturalmente, não é levada a sério.
Quando Pratt começou a desenhar a Balada ainda não tinha bem a noção de qual seria a personagem principal da obra. Corto Maltese era nas primeiras páginas apenas um protagonista secundário, um esboço de herói. Ao longo do livro, até a sua expressão se vai definindo.
Claramente a mão do desenhador procura de página em página uma face convincente e, num processo muito mais amploe profundo, uma imagem e uma personalidade definitiva para o seu marinheiro.
Quanto a romance de aventuras, a Balada do Mar Salgado é antes de mais isso mesmo: um processo de criação, um «work in progress». Corto Maltese não possui ainda o carisma infalível que mais tarde o iria tornar o centro de todas as atenções, em títulos como As Célticas, ou Fábula de Veneza. Por isso, neste teatro dos espaços infinitos o palco é mais importante que a trama ou a espessura psicológica dos actores. Agrada-me ter A Balada do Mar Salgado não como uma hesitante aventura de Corto Maltese, mas sim como uma heróica homenagem ao imenso Oceano Pacífico, a todos os que nele navegaram, aos muitos que nele se perderam.
Nesta cartografia emocional, onde as distâncias e os tempos de navegação não fazem qualquer sentido, onde os arquipélagos se mexem na lógica do enredo como peças de xadrez no tabuleiro do autor, onde etnias que distam milhares de quilómetros entre si aparecem a conviver descontraidamente na mesma ilha, em tudo isto, não importa a veracidade. Importa a nomeação. A Balada é uma coreográfica cerimónia de entrega de prémios e reconhecimentos à história, à sociologia e às civilizações do Pacífico.
Não por acaso, Rasputine anda a ler o diário da navegação de Louis-Antoine Bouganville, Viagem à Volta do Mundo. Bouganville procurava a misteriosa Terra Australis Incógnita, a massa continental que, segundo as teorias medievais, devia existir algures no hemisfério sul para contrabalançar o peso da Eurásia. Durante a expedição, atracou no Taiti - o segundo europeu a fazê-lo, dois anos depois de Wallis. E, mais uma vez, os marinheiros poderiam, digamos, «apreciar» a hospitalidade das taitianas. Publicada em 1771, a Viagem à Volta do Mundo teve uma enorme notoriedade e moldou no imaginário europeu o mito do Taiti como paraíso terrestre. Rousseau e amigos viram em tudo isto a confirmação das suas teorias sobre os efeitos nefastos da civilização na inocência do «bom selvagem». O livro de Bouganville é, portanto, uma obra central na história do Pacífico – como tal, faz parte das «nominations» que a Balada chama ao palco das homenagens.
No palco, grande destaque também para os trajes, os penteados, as habitações, as tatuagens e outros símbolos culturais da mais impressionante classe de navegadores que a Humanidade conheceu: os polinésios. Oriundos da Indochina, começaram a navegar o Pacífico há talvez quatro mil anos. Primeiro aventurando-se nas ilhas dos arquipélagos «internos» do mar do sul da China, depois tentando navegação já de largo fôlego, os polinésios conseguiram ocupar um território duas vezes superior ao dos Estados Unidos. Em 1300 a.C. as ilhas de Fiji e de Tonga encontravam-se solidamente habitadas e, ao longo do primeiro milénio da nossa era, seria a vez da Samoa, do Taiti, do Havai, da Nova Zelândia e por fim da Ilha da Páscoa, o pedacinho de terra mais isolado do mundo.
Como conseguiram estas populações analfabetas e com arcaicos materiais e métodos de navegação atravessar repetidas vezes o oceano mais extenso do Planeta e descobrir ilhas minúsculas com uma precisão infalível? Com um conhecimento admirável da posição das estrelas das direcções das correntes e dos ventos, da forma das nuvens, do movimento das ondas, da temperatura das águas, dos cheiros do ar. E com a ajuda das aves e dos peixes do mar com quem, segundo as lendas, sabiam dialogar. Em última análise, é essa sabedoria quase sobre-humana que A Balada do Mar Salgado celebra.
Por isso, Corto diz ao jovem maori Tarao: «És o melhor navegador que eu conheça. Por isso, as páginas mais comoventes e delicadas do livro são as da navegação de Tarao pelo Pacífico, numa corrida contra o tempo a tentar chegar a Buranea, onde se encontra a armada neozelandesa, para lhes entregar Pandora, que jaz quase moribunda na embarcação. A holandesa Pandora Groosvenore é a magnífica menina-mulher à roda da qual dançam todos os homens desta história, e talvez a sua personagem principal, se é que existe uma.
E é Pandora quem explica aos oficiais neozelandeses como conseguiram chegar à ilha: Tarao cantava canções que encantaram o amigo tubarão e o convenceram a indicar a rota para Buranea. Naturalmente, não é levada a sério.
in, ÚNICA 19 Maio 2007 Expresso p.102, 103
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