José Valle de Figueiredo
Os tempos e as Vontades
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Pedro Mexia
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Quatro décadas de uma poesia intelectualista, ao mesmo tempo clássica e modernista, empenhada na construção do poema e no culto patriótico
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José Valle de Figueiredo (n. 1942) militou na direita nacionalista e depois no spinolismo mais activo, mas a sua poesia, agora coligida na Imprensa Nacional O Seu a Seu Poema, 1959-2002, com um extenso prefácio de José Carlos Seabra Pereira, está muito longe de outros poetas militantes mais conhecidos: António Manuel Couto Viana, tradicionalista nas ideias e no estilo, e Rodrigo Emílio, inventivo e panfletário. Valle de Figueiredo só tem um poema explicitamente político, uma ode a Jan Palach (o checo que se imolou como protesto contra a invasão soviética), além de um eco saudosista e "lusíada" em livros mais recentes. Os seus poemas essenciais, publicados nos anos 70, reflectem sobretudo um intelectualismo ao mesmo tempo classicista e modernista, muito tributário de Ezra Pound e dos concretistas brasileiros, autores cultivados pelo grupo da revista Tempo Presente, a que Valle de Figueiredo pertenceu.
O seu primeiro livro, As Cinco Regras do Equilíbrio (1959), sendo juvenília, já revelava uma preocupação decisiva entre o som e o sentido. É uma poesia hierática, em tom interrogativo e ritmo fluido, e com traços de orientalismo a que o autor regressaria décadas mais tarde. A Palavra Palavra (1960), significativamente dedicado ao experimentalista Luís Pignatelli, mostra que em Valle de Figueiredo a palavra não apenas corresponde às coisas (como em Sophia) mas é em si mesma uma coisa. Um aspecto muito visível em dois livros decisivos: Poemavra (1970) e Gradual (1974).
Poemavma associa o "poema" à "lavra", ou seja, ao trabalho poético. Nos textos de José Valle de Figueiredo o poema é sempre mais importante do que "a poesia", e cada poema é uma desmultiplicação dos sentidos de criação: "canto", "curso", "caça" ou mesmo "animação" (no sentido bíblico). O seu idioma poético, de raiz camoniana, é seco, duro, enxuto, com versos bem medidos e pesados, num jogo umas vezes arcaico outras vezes vanguardista, como os jogos sonoros e as palavras homófonas a terem grande preponderância: "Quando do sol se acerca / a manhã clara e manifesta, / do dia arremedo descuidado, / da vida breve, não vejo / o tempo vão que vou passando. / Espero da mudança, andando / no que tenho mais mercê, / alegre passo no curso / mais fluente, na tarde / que as avezinhas trazem / na andança desta vida. / Da manhã se avizinha / o coração mais sombrio, / no tempo claro e mudave; / como ave espero, / na morte visitando o dia, / outro dia e mais sorte" (pág. 88). Poemavra liga muito habilmente os clássicos e a Vanguarda, acabando muito próximo dos concretistas brasileiros ou de João Cabral de Melo Neto. É uma poesia da linguagem, feita de textos, texturas, "textemas", que não abdica no entanto de imagens líricas (o cão, o cardo, o galo, a agapanto, o fogo). Um exemplo: "Como face ou retrato, / exacto e lato, / curso recto, ou pasto / que o cabro come - como andança, / com suas pernas / mais altas, Áries / no seu signo, como face ou retrato, terso / e recto, com seu curso / mais lato aqui vem: / traz as mãos do poema, a toalha do verso, / e à noite, à noite alta, / traz o signo converso, /a parte que falta. /Corra-se a lágrima, / cresce o animal / cortando o poema da poesia. / Arde a tarde, / e a tarde nos alivia. / Serenava o dia" (pág. 107). É uma poesia esculpida, feita de "faca" e "cristal".
O livro também reflecte a experiência do autor na Guiné, dando voz a alguém que acreditava naquilo por que combatia, coisa não tão comum como isso; no entanto, as convicções políticas de Valle de Figueiredo não esmagam estes poemas. Aliás, exceptuando um ou outro vocábulo ("capim", "sangue", "armas") não é sequer evidente que sejam poemas de guerra. O que temos sem dúvida é um tempo lento, uma sucessão de dias iguais, um exorcismo de morte, uma percepção da mudança (a evitável e a inevitável). Mas talvez seja curioso notar o ambíguo dos termos "guerra" e "paz" neste poemário. Em versos como "A palavra guerra / faz a paz / em sua guerra". Ou "a poesia é esta guerra".O ainda: "cada poema / tem a sua guerra". Os ecos patrióticos são francamente mais vagos e ambíguos que o persistente tom cortante, que identifica poema e guerra mas em que o poema parece sempre uma guerra mais determinante que a guerra concreta. Esse combate com a palavra é o elemento essencial na poética de Valle de Figueiredo. Um combate onde nunca há verdadeiramente paz.
É em Gradual (editado em Agosto de 1974) que se notam alguns ecos políticos, e mesmo assim indirectos. Embora contenha certamente poemas escritos antes do 25 de Abril (revolução que valeu ao poeta a prisão e o exílio), esta colectânea tem um mais acentuado sentimento de amargura, com momentos mais agrestes em que surgem termos como "rapina" e outros. No entanto, o aspecto apocalíptico do livro segue o Apocalipse propriamente dito, e a tradição hermética em geral, com cifras, chaves, enigmas. E um recuo para o hermetismo, com ecos literários (a "máquina do mundo", a "selva escura"), onde o sol e as aves são tanto literatura como símbolo. É sobretudo mais uma declinação de um poética da mudança, que se exprime num estupendo poema sobre O Corvo de Poe, onde o "nunca" pode ser um "sempre" ainda oculto. A elevação não se perdeu: "Quem, de se enredar, / em quanto cessa o fremente, / e áspero sinal de estar ausente / e mova o presente ao esquecimento // do que fora árvore aberta, / e volta continuamente a estar perto / a cada qual e sempre serenamente: / o incessante peso do Verão // que amotina o Sol e a luzente / passagem ao dia de estar somente / junto ao lado e desse lado / se tempera o ferro e o frio // de crescer ao aquecimento suave / e ao rio maduro de estar contente / e ir assim, da tormenta ileso / e, mais que suposto, fogo aceso" (pág. 174)
O desencanto é mais explícito em Portuguesimentos (1977) e Portugraal (1980-1985), poemas notoriamente mais comunicantes mas igualmente elegantes, que fazem uma espécie de inventário da cânone nacional, com os seus poetas e heróis, centrado naturalmente nas Descobertas, no "mar nosso", na "lusa gente". Há desencanto nestes poemas, expresso em títulos como "Sentimento de um acidental" ou "O lusíada, coitado"; há um pessimismo grave que remete para Sá de Miranda; há um lamento quase metafísico que claramente se inscreve na tradição dos "Sôbolos rios". É essa mágoa do "magno lusitano tecido rasgado" que se prolonga nos últimos livros, como O Provedor de Vivos (1988), um balanço do fim do Império e de uma certa ideia de Portugal. Mudaram os tempos e as vontades, ficou apenas uma crença sobrenatural no Nome e na Imagem. E uma crença árdua e inacabada no poema.
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Pedro Mexia
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Quatro décadas de uma poesia intelectualista, ao mesmo tempo clássica e modernista, empenhada na construção do poema e no culto patriótico
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José Valle de Figueiredo (n. 1942) militou na direita nacionalista e depois no spinolismo mais activo, mas a sua poesia, agora coligida na Imprensa Nacional O Seu a Seu Poema, 1959-2002, com um extenso prefácio de José Carlos Seabra Pereira, está muito longe de outros poetas militantes mais conhecidos: António Manuel Couto Viana, tradicionalista nas ideias e no estilo, e Rodrigo Emílio, inventivo e panfletário. Valle de Figueiredo só tem um poema explicitamente político, uma ode a Jan Palach (o checo que se imolou como protesto contra a invasão soviética), além de um eco saudosista e "lusíada" em livros mais recentes. Os seus poemas essenciais, publicados nos anos 70, reflectem sobretudo um intelectualismo ao mesmo tempo classicista e modernista, muito tributário de Ezra Pound e dos concretistas brasileiros, autores cultivados pelo grupo da revista Tempo Presente, a que Valle de Figueiredo pertenceu.
O seu primeiro livro, As Cinco Regras do Equilíbrio (1959), sendo juvenília, já revelava uma preocupação decisiva entre o som e o sentido. É uma poesia hierática, em tom interrogativo e ritmo fluido, e com traços de orientalismo a que o autor regressaria décadas mais tarde. A Palavra Palavra (1960), significativamente dedicado ao experimentalista Luís Pignatelli, mostra que em Valle de Figueiredo a palavra não apenas corresponde às coisas (como em Sophia) mas é em si mesma uma coisa. Um aspecto muito visível em dois livros decisivos: Poemavra (1970) e Gradual (1974).
Poemavma associa o "poema" à "lavra", ou seja, ao trabalho poético. Nos textos de José Valle de Figueiredo o poema é sempre mais importante do que "a poesia", e cada poema é uma desmultiplicação dos sentidos de criação: "canto", "curso", "caça" ou mesmo "animação" (no sentido bíblico). O seu idioma poético, de raiz camoniana, é seco, duro, enxuto, com versos bem medidos e pesados, num jogo umas vezes arcaico outras vezes vanguardista, como os jogos sonoros e as palavras homófonas a terem grande preponderância: "Quando do sol se acerca / a manhã clara e manifesta, / do dia arremedo descuidado, / da vida breve, não vejo / o tempo vão que vou passando. / Espero da mudança, andando / no que tenho mais mercê, / alegre passo no curso / mais fluente, na tarde / que as avezinhas trazem / na andança desta vida. / Da manhã se avizinha / o coração mais sombrio, / no tempo claro e mudave; / como ave espero, / na morte visitando o dia, / outro dia e mais sorte" (pág. 88). Poemavra liga muito habilmente os clássicos e a Vanguarda, acabando muito próximo dos concretistas brasileiros ou de João Cabral de Melo Neto. É uma poesia da linguagem, feita de textos, texturas, "textemas", que não abdica no entanto de imagens líricas (o cão, o cardo, o galo, a agapanto, o fogo). Um exemplo: "Como face ou retrato, / exacto e lato, / curso recto, ou pasto / que o cabro come - como andança, / com suas pernas / mais altas, Áries / no seu signo, como face ou retrato, terso / e recto, com seu curso / mais lato aqui vem: / traz as mãos do poema, a toalha do verso, / e à noite, à noite alta, / traz o signo converso, /a parte que falta. /Corra-se a lágrima, / cresce o animal / cortando o poema da poesia. / Arde a tarde, / e a tarde nos alivia. / Serenava o dia" (pág. 107). É uma poesia esculpida, feita de "faca" e "cristal".
O livro também reflecte a experiência do autor na Guiné, dando voz a alguém que acreditava naquilo por que combatia, coisa não tão comum como isso; no entanto, as convicções políticas de Valle de Figueiredo não esmagam estes poemas. Aliás, exceptuando um ou outro vocábulo ("capim", "sangue", "armas") não é sequer evidente que sejam poemas de guerra. O que temos sem dúvida é um tempo lento, uma sucessão de dias iguais, um exorcismo de morte, uma percepção da mudança (a evitável e a inevitável). Mas talvez seja curioso notar o ambíguo dos termos "guerra" e "paz" neste poemário. Em versos como "A palavra guerra / faz a paz / em sua guerra". Ou "a poesia é esta guerra".O ainda: "cada poema / tem a sua guerra". Os ecos patrióticos são francamente mais vagos e ambíguos que o persistente tom cortante, que identifica poema e guerra mas em que o poema parece sempre uma guerra mais determinante que a guerra concreta. Esse combate com a palavra é o elemento essencial na poética de Valle de Figueiredo. Um combate onde nunca há verdadeiramente paz.
É em Gradual (editado em Agosto de 1974) que se notam alguns ecos políticos, e mesmo assim indirectos. Embora contenha certamente poemas escritos antes do 25 de Abril (revolução que valeu ao poeta a prisão e o exílio), esta colectânea tem um mais acentuado sentimento de amargura, com momentos mais agrestes em que surgem termos como "rapina" e outros. No entanto, o aspecto apocalíptico do livro segue o Apocalipse propriamente dito, e a tradição hermética em geral, com cifras, chaves, enigmas. E um recuo para o hermetismo, com ecos literários (a "máquina do mundo", a "selva escura"), onde o sol e as aves são tanto literatura como símbolo. É sobretudo mais uma declinação de um poética da mudança, que se exprime num estupendo poema sobre O Corvo de Poe, onde o "nunca" pode ser um "sempre" ainda oculto. A elevação não se perdeu: "Quem, de se enredar, / em quanto cessa o fremente, / e áspero sinal de estar ausente / e mova o presente ao esquecimento // do que fora árvore aberta, / e volta continuamente a estar perto / a cada qual e sempre serenamente: / o incessante peso do Verão // que amotina o Sol e a luzente / passagem ao dia de estar somente / junto ao lado e desse lado / se tempera o ferro e o frio // de crescer ao aquecimento suave / e ao rio maduro de estar contente / e ir assim, da tormenta ileso / e, mais que suposto, fogo aceso" (pág. 174)
O desencanto é mais explícito em Portuguesimentos (1977) e Portugraal (1980-1985), poemas notoriamente mais comunicantes mas igualmente elegantes, que fazem uma espécie de inventário da cânone nacional, com os seus poetas e heróis, centrado naturalmente nas Descobertas, no "mar nosso", na "lusa gente". Há desencanto nestes poemas, expresso em títulos como "Sentimento de um acidental" ou "O lusíada, coitado"; há um pessimismo grave que remete para Sá de Miranda; há um lamento quase metafísico que claramente se inscreve na tradição dos "Sôbolos rios". É essa mágoa do "magno lusitano tecido rasgado" que se prolonga nos últimos livros, como O Provedor de Vivos (1988), um balanço do fim do Império e de uma certa ideia de Portugal. Mudaram os tempos e as vontades, ficou apenas uma crença sobrenatural no Nome e na Imagem. E uma crença árdua e inacabada no poema.
in, 6ª - DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 6 ABRIL 2007 - p.31
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