A Esquerda e o Iberismo
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Sent: Monday, November 06, 2006 10:39 PM
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Subject: A Esquerda e o Iberismo
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ALENTEJO POPULAR (Beja)
02-Novembro de 2006
02-Novembro de 2006
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«Do fantasma do Iberismo à dominação económica espanhola»
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Miguel Urbano Rodrigues
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Antes e depois da visita de Cavaco Silva a Madrid, alguns órgãos de comunicação social aproveitaram o acontecimento para retirar de arquivos bolorentos o tema do iberismo e agitar esse fantasma. Promoveram sondagens que apresentaram resultados muito semelhantes. Quase metade dos espanhóis seriam favoráveis à existência de um único estado na Península e um quarto dos portugueses desejariam a fusão com a Espanha.
O Público dedicou três páginas ao assunto. Numa delas o correspondente de El Pais em Lisboa, em tom que navega entre o sério e o irónico, reflecte sobre a hipótese da criação de «uma nação única». O que chama a atenção nesses textos e noutros publicados na imprensa é a leviandade da maioria dos comentários e depoimentos e o silêncio sobre duas questões, essas sim, importantes:
1. Nenhum dos autores e entrevistados manifesta curiosidade pelo súbito interesse dos media pela problemática da integração de Portugal na Espanha. Ninguém pergunta por que se levanta de repente na comunicação social esta algazarra tonta em torno do iberismo.
2. Em nenhum dos artigos lidos encontrei qualquer referência à avassaladora colonização económica de Portugal pela Espanha. No labirinto de argumentos invocados a favor e contra o projecto ibérico identifiquei um denominador comum: a conclusão de que portugueses e espanhóis se assemelham como dois irmãos. Até Miguel Bastenier, que discorda da Ibéria única, escreveu na sua coluna de El Pais, que «não há dois países que se pareçam mais».
O Público dedicou três páginas ao assunto. Numa delas o correspondente de El Pais em Lisboa, em tom que navega entre o sério e o irónico, reflecte sobre a hipótese da criação de «uma nação única». O que chama a atenção nesses textos e noutros publicados na imprensa é a leviandade da maioria dos comentários e depoimentos e o silêncio sobre duas questões, essas sim, importantes:
1. Nenhum dos autores e entrevistados manifesta curiosidade pelo súbito interesse dos media pela problemática da integração de Portugal na Espanha. Ninguém pergunta por que se levanta de repente na comunicação social esta algazarra tonta em torno do iberismo.
2. Em nenhum dos artigos lidos encontrei qualquer referência à avassaladora colonização económica de Portugal pela Espanha. No labirinto de argumentos invocados a favor e contra o projecto ibérico identifiquei um denominador comum: a conclusão de que portugueses e espanhóis se assemelham como dois irmãos. Até Miguel Bastenier, que discorda da Ibéria única, escreveu na sua coluna de El Pais, que «não há dois países que se pareçam mais».
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O MITO E A REALIDADE
O MITO E A REALIDADE
Uma extensa e sinuosa fronteira separa, na aparência artificialmente, Portugal da Espanha. Mas é suficiente atravessá-la e logo, ao entrar nos pueblos e nas vilas da raia, qualquer estrangeiro percebe que somos povos marcados por profundas diferenças. A historia que nos diferenciou com lentidão - somos filhos da Galiza- principiou a cavar abismos culturais entre os dois países após a Revolução de 1640 que pôs termo à breve união dinástica . A partir de então, o castelhano que, era de uso comum, inclusive na literatura, entre os portugueses instruídos, quase deixou de ser falado. Portugal voltou-se para a França e durante três séculos o povo de Voltaire passou a ser a referência cultural.
Distanciados por um século, Eça e Saramago contemplam e sentem a França e a Espanha sob perspectivas que têm muito pouco de comum. Mas é transparente que a influência de Paris como fonte de inspiração, no caminhar do Portugal urbano, não foi substituída, ao desaparecer, por uma presença espanhola. Para a juventude, as grandes referencias são hoje anglo-saxónicas nos mais diferenciados aspectos da vida quotidiana e na adopção de valores culturais.
É um facto que acultura norte-americana, sobretudo a sub cultura de exportação, marca hoje decisivamente o comportamento social da totalidade das sociedades europeias. Os efeitos - do choque produzido não são, porem, os, mesmos, da Suécia à Itália, da França à Grécia. A Espanha, na transição do fascismo para um regime de fachada democrática, tem assimilado o pior do neo-liberalismo globalizado e da chamada macworld cultura. O autóctone e o importado fundiram-se numa amalgama na qual a herança mediterrânea - sobretudo a de Roma e do Islão- cede perante a ofensiva de um capitalismo cuja peculiaridade regional é de uma enorme agressividade.
A burguesia portuguesa, impressionada pelas taxas de crescimento do PIB no país vizinho, cita com respeito o «milagre espanhol». Nem sempre o afirma explicitamente, mas admite que é um factor de peso a favor de uma união com a Espanha. A Espanha passou inclusive a ser um país exportador de capitais, o que suscita a sua admiração. Mas o que é, afinal, esse «milagre»?
O capitalismo espanhol é hoje um dos mais predatórios do mundo. Uma revista tão insuspeita pela sua fidelidade ao neo-liberalismo como a Newsweek comparou já a actuação na América Latina das transnacionais da Espanha ao conquistador do México Hernan Cortés, responsável pela destruição da civilização azteca. O governo de Madrid repete com orgulho que cinco séculos após a chegada de Colombo ao Novo Mundo os investimentos directos espanhóis na América Latina somente são superados pelos dos EUA. Mas por que preço para os países onde
o capital espanhol se instala?
Para citar apenas os casos mais chocantes, a Repsol, a Telefónica e o Banco Santander aparecem aos olhos das forças progressistas da Argentina, do Brasil, da Bolívia, da Colômbia e do Chile, entre outros, como polvos tentaculares do capital. Não apenas pela sobre-exploração dos trabalhadores, também por surgirem envolvidos em escândalos, roubalheiras e violações da soberania dos Estados onde desenvolvem a sua actividade.
Aliás, mesmo encarado sob um ângulo exclusivamente económico e financeiro, o «milagre» espanhol tem pés de barro. Na última década o motor do crescimento do PIB tem sido o boom da construção, o que segundo Le Monde e o The New York Times, anuncia tempos difíceis porque o sector imobiliário, saturado, perdeu o dinamismo e acusa o efeito da subida da taxa de juros. A essa fragilidade soma-se uma grande dependência do turismo, uma fonte de receitas extremamente instável.
Os iberistas, ao esboçarem o panorama de uma Espanha pletórica de energias, exemplo de progresso e criatividade numa Europa estagnada, simulam também esquecer que o país exibe a mais alta taxa de desemprego dos 15 membros da União Europeia anterior ao alargamento.
No aranzel levantado em volta das vantagens e desvantagens da integração de Portugal na Espanha não aludem sequer os participantes no abstruso debate a racismo e à xenofobia que fazem hoje da pátria de Cervantes um dos países europeus onde os imigrantes, sobretudo os magrebinos e os equatorianos e colombianos, são mais discriminados. Não. Preferem discorrer sobre temas como a localização da capital de uma Ibéria unida, a estrutura institucional do Estado - Federação ou simples transformação de Portugal em mais uma Região Autónoma - e, finalmente que papel seria em tudo isso o do Rei D Juan Carlos de Bourbon . São mínimas as referências à incapacidade secular demonstrada pelo Poder Central espanhol para conviver democraticamente com as nações hegemonizadas por Castela. Não obstante afigura-se-lhes natural que Madrid, repressora da fome de liberdade de bascos e catalães, possa absorver tranquilamente Portugal.
Na abordagem das peculiaridades que diferenciam e aproximam portugueses e espanhóis fala-se do bacalhau, do fado, do flamenco, de marialvas e senhoritos, dos dois idiomas, mas em todo esse festim de leviandades não identifiquei um depoimento que tocasse mesmo ao de leve numa questão de fundo: o modo de encarar a existência, o comportamento no quotidiano de portugueses e espanhóis, sejam estes castelhanos, catalães ou bascos, por outras palavras, a atmosfera humana, o espectáculo da vida oferecido por ambos os povos.
Essa omissão é definidora da inutilidade e do ridículo da ressurreição do fantasma do iberismo. Porque o desencontro de idiossincrasias ilumina bem uma realidade: longe de serem «muito parecidos», portugueses e espanhóis distanciaram-se progressivamente, exibindo atitudes quase antagónicas perante a grande e breve aventura da vida.
Vivo em Serpa, na Margem Esquerda do Guadiana. É suficiente atravessar a fronteira e entrar pela Província de Badajoz ou pela de Huelva e parar em qualquer pueblo para sentir uma profunda diferença. Eles trabalham a horas diferentes, transformam o culto do aperitivo num instrumento de convívio, comem a horas diferentes. O ruído é ali componente da vida, do conceito dos lazeres. Em Madrid ou Barcelona, tão desiguais, essas diferenças na atitude perante a vida, na forma de a percorrer e desfrutar, são ainda mais acentuadas. Não critico, registo o inocultável. Essa especificidade espanhola não acompanhou os senhores da Conquista.
Na América Latina hispano-india, o fluxo do quotidiano - com a única excepção do México - é balizado pela norma europeia. Come-se, trabalha-se e convive-se em horários semelhantes aos dos países da União Europeia. Outra omissão em todos os textos em apreço, na imprensa de Lisboa e Madrid, é a falta de referências à colonização económica de Portugal pela Espanha.
O processo em curso é avassalador. Ha três décadas a Espanha não existia praticamente como parceiro comercial de Portugal. Hoje ocupa o primeiro lugar nas importações portuguesas. Os nossos vizinhos souberam aproveitar os mecanismos da Comunidade Europeia. Mas não ocupam somente uma posição hegemónica no comércio. A invasão do capital espanhol é diluviana. A banca espanhola conquistou uma parcela importante do mercado português. O mesmo ocorre com a hotelaria e as grandes lojas transnacionais como El Corte Inglês e Zara. As imobiliárias espanholas invadem as nossas cidades, do Minho ao Algarve.
O processo de colonização pacífica, no âmbito do funcionamento do mercado, assume facetas particularmente alarmantes no Alentejo. Capitalistas espanhóis compraram já as melhores terras no perímetro do Alqueva. Adquiriram milhares de hectares, sobretudo no Distrito de Beja, para criação de porcos, instalação de lagares e plantação de oliveiras e vinhas. Essa invasão do capital espanhol é obviamente festejada pelo Governo de Sócrates e pela grande burguesia como muito positiva. Saúdam os investidores espanhóis como empresários agentes do progresso. Agradecem.
Com A espontaneidade da nobreza de 1383 a saudar D João De Castela e a nobreza de 1580 a alinhar com Filipe II. Essa forma de dominação económica encobre, afinal, uma modalidade de intervenção imperial. O correspondente em Lisboa de El Pais garante que «o imperialismo espanhol está definitivamente liquidado». Mas a sua peremptória afirmação apenas evidência que ou desconhece o que seja o imperialismo ou pretende dissipar no berço temores que identifica em amplos sectores do povo português. A Espanha não tem mais colónias. Nem passa pela cabeça de qualquer governante espanhol conquistar Portugal pelas armas.
Mas a actuação do capital espanhol na América Latina configura uma forma de imperialismo. Embora diferente, mais discreta, a estratégia subjacente à política dos investimentos maciços em Portugal é igualmente inseparável de uma concepção imperialista das relações entre os povos. Alias, contrariamente ao que sustentam os apologistas da política de Zapatero, apresentada como social-democrata e progressista, ela, no fundamental caracteriza-se pela fidelidade ao neo-liberalismo e pelo alinhamento com o imperialismo.
O presidente do Governo de Madrid comprometeu-se nas vésperas das eleições que levaram o PSOE ao poder a retirar as tropas espanholas do Iraque. Esse foi um grande trunfo eleitoral. Cumpriu. Mas quase logo foram enviados para o Afeganistão forças do Exercito espanhol para ali combaterem, integradas no dispositivo da Nato, a insurreição em curso naquele pais. Ora essa é outra guerra imperialista.
A Espanha é - não devemos esquece-lo - um dos países da União Europeia que nos últimos anos tem colaborado mais activamente, através das suas forças armadas, com a estratégia de dominação mundial do EUA. O discurso de Zapatero tenta negar essa evidência. Mas os factos negam-lhe as palavras. Podem argumentar os defensores do iberismo que Portugal também enviou forças para a Bósnia, Afeganistão e o Iraque por decisão de sucessivos governos. Assim aconteceu. Mas a pequena dimensão desses contingentes é esclarecedora da diversidade de atitudes dos povos de Portugal e Espanha.
Sócrates é um medíocre ambicioso, profundamente reaccionário. No campo internacional as suas tomadas de posição reflectem a orientação transmitida por Washington. Mas está consciente de que o povo português conserva viva a memória da guerra colonial desaprovou desde o início as agressões ao Iraque e ao Afeganistão, mascaradas de intervenções em defesa da liberdade e da democracia. Daí o carácter inexpressivo da presença de militares portugueses naqueles dois países. Nem Cavaco ousaria dizer-lhes, como o fez o Rei de Espanha em visita às suas tropas, que estão a servir a Pátria e os mais nobres ideais humanistas.
Para terminar quero esclarecer que admiro muito a outra Espanha, a Espanha mestiça, nascida de culturas diferenciadas, a Espanha de Cervantes (o Quixote, lido e relido, continua a ser para mim um livro de cabeceira) e de Goya, de Dolores Ibarruri e Lister, a que se bateu contra o fascismo e hoje condena nas ruas o neo-liberalismo, as guerras imperiais e a monarquia ridícula e corrupta que as aplaude.
Essa Espanha, fraterna, revolucionaria, alinha, tenho a certeza, com aqueles, como eu, que apontam como farsa este alarido dos meios de comunicação social na campanha que desenterrou o espantalho do iberismo. Sou, como comunista, internacionalista. Mas aprendi nos combates da vida que o universal mergulha as raízes no nacional.
Distanciados por um século, Eça e Saramago contemplam e sentem a França e a Espanha sob perspectivas que têm muito pouco de comum. Mas é transparente que a influência de Paris como fonte de inspiração, no caminhar do Portugal urbano, não foi substituída, ao desaparecer, por uma presença espanhola. Para a juventude, as grandes referencias são hoje anglo-saxónicas nos mais diferenciados aspectos da vida quotidiana e na adopção de valores culturais.
É um facto que acultura norte-americana, sobretudo a sub cultura de exportação, marca hoje decisivamente o comportamento social da totalidade das sociedades europeias. Os efeitos - do choque produzido não são, porem, os, mesmos, da Suécia à Itália, da França à Grécia. A Espanha, na transição do fascismo para um regime de fachada democrática, tem assimilado o pior do neo-liberalismo globalizado e da chamada macworld cultura. O autóctone e o importado fundiram-se numa amalgama na qual a herança mediterrânea - sobretudo a de Roma e do Islão- cede perante a ofensiva de um capitalismo cuja peculiaridade regional é de uma enorme agressividade.
A burguesia portuguesa, impressionada pelas taxas de crescimento do PIB no país vizinho, cita com respeito o «milagre espanhol». Nem sempre o afirma explicitamente, mas admite que é um factor de peso a favor de uma união com a Espanha. A Espanha passou inclusive a ser um país exportador de capitais, o que suscita a sua admiração. Mas o que é, afinal, esse «milagre»?
O capitalismo espanhol é hoje um dos mais predatórios do mundo. Uma revista tão insuspeita pela sua fidelidade ao neo-liberalismo como a Newsweek comparou já a actuação na América Latina das transnacionais da Espanha ao conquistador do México Hernan Cortés, responsável pela destruição da civilização azteca. O governo de Madrid repete com orgulho que cinco séculos após a chegada de Colombo ao Novo Mundo os investimentos directos espanhóis na América Latina somente são superados pelos dos EUA. Mas por que preço para os países onde
o capital espanhol se instala?
Para citar apenas os casos mais chocantes, a Repsol, a Telefónica e o Banco Santander aparecem aos olhos das forças progressistas da Argentina, do Brasil, da Bolívia, da Colômbia e do Chile, entre outros, como polvos tentaculares do capital. Não apenas pela sobre-exploração dos trabalhadores, também por surgirem envolvidos em escândalos, roubalheiras e violações da soberania dos Estados onde desenvolvem a sua actividade.
Aliás, mesmo encarado sob um ângulo exclusivamente económico e financeiro, o «milagre» espanhol tem pés de barro. Na última década o motor do crescimento do PIB tem sido o boom da construção, o que segundo Le Monde e o The New York Times, anuncia tempos difíceis porque o sector imobiliário, saturado, perdeu o dinamismo e acusa o efeito da subida da taxa de juros. A essa fragilidade soma-se uma grande dependência do turismo, uma fonte de receitas extremamente instável.
Os iberistas, ao esboçarem o panorama de uma Espanha pletórica de energias, exemplo de progresso e criatividade numa Europa estagnada, simulam também esquecer que o país exibe a mais alta taxa de desemprego dos 15 membros da União Europeia anterior ao alargamento.
No aranzel levantado em volta das vantagens e desvantagens da integração de Portugal na Espanha não aludem sequer os participantes no abstruso debate a racismo e à xenofobia que fazem hoje da pátria de Cervantes um dos países europeus onde os imigrantes, sobretudo os magrebinos e os equatorianos e colombianos, são mais discriminados. Não. Preferem discorrer sobre temas como a localização da capital de uma Ibéria unida, a estrutura institucional do Estado - Federação ou simples transformação de Portugal em mais uma Região Autónoma - e, finalmente que papel seria em tudo isso o do Rei D Juan Carlos de Bourbon . São mínimas as referências à incapacidade secular demonstrada pelo Poder Central espanhol para conviver democraticamente com as nações hegemonizadas por Castela. Não obstante afigura-se-lhes natural que Madrid, repressora da fome de liberdade de bascos e catalães, possa absorver tranquilamente Portugal.
Na abordagem das peculiaridades que diferenciam e aproximam portugueses e espanhóis fala-se do bacalhau, do fado, do flamenco, de marialvas e senhoritos, dos dois idiomas, mas em todo esse festim de leviandades não identifiquei um depoimento que tocasse mesmo ao de leve numa questão de fundo: o modo de encarar a existência, o comportamento no quotidiano de portugueses e espanhóis, sejam estes castelhanos, catalães ou bascos, por outras palavras, a atmosfera humana, o espectáculo da vida oferecido por ambos os povos.
Essa omissão é definidora da inutilidade e do ridículo da ressurreição do fantasma do iberismo. Porque o desencontro de idiossincrasias ilumina bem uma realidade: longe de serem «muito parecidos», portugueses e espanhóis distanciaram-se progressivamente, exibindo atitudes quase antagónicas perante a grande e breve aventura da vida.
Vivo em Serpa, na Margem Esquerda do Guadiana. É suficiente atravessar a fronteira e entrar pela Província de Badajoz ou pela de Huelva e parar em qualquer pueblo para sentir uma profunda diferença. Eles trabalham a horas diferentes, transformam o culto do aperitivo num instrumento de convívio, comem a horas diferentes. O ruído é ali componente da vida, do conceito dos lazeres. Em Madrid ou Barcelona, tão desiguais, essas diferenças na atitude perante a vida, na forma de a percorrer e desfrutar, são ainda mais acentuadas. Não critico, registo o inocultável. Essa especificidade espanhola não acompanhou os senhores da Conquista.
Na América Latina hispano-india, o fluxo do quotidiano - com a única excepção do México - é balizado pela norma europeia. Come-se, trabalha-se e convive-se em horários semelhantes aos dos países da União Europeia. Outra omissão em todos os textos em apreço, na imprensa de Lisboa e Madrid, é a falta de referências à colonização económica de Portugal pela Espanha.
O processo em curso é avassalador. Ha três décadas a Espanha não existia praticamente como parceiro comercial de Portugal. Hoje ocupa o primeiro lugar nas importações portuguesas. Os nossos vizinhos souberam aproveitar os mecanismos da Comunidade Europeia. Mas não ocupam somente uma posição hegemónica no comércio. A invasão do capital espanhol é diluviana. A banca espanhola conquistou uma parcela importante do mercado português. O mesmo ocorre com a hotelaria e as grandes lojas transnacionais como El Corte Inglês e Zara. As imobiliárias espanholas invadem as nossas cidades, do Minho ao Algarve.
O processo de colonização pacífica, no âmbito do funcionamento do mercado, assume facetas particularmente alarmantes no Alentejo. Capitalistas espanhóis compraram já as melhores terras no perímetro do Alqueva. Adquiriram milhares de hectares, sobretudo no Distrito de Beja, para criação de porcos, instalação de lagares e plantação de oliveiras e vinhas. Essa invasão do capital espanhol é obviamente festejada pelo Governo de Sócrates e pela grande burguesia como muito positiva. Saúdam os investidores espanhóis como empresários agentes do progresso. Agradecem.
Com A espontaneidade da nobreza de 1383 a saudar D João De Castela e a nobreza de 1580 a alinhar com Filipe II. Essa forma de dominação económica encobre, afinal, uma modalidade de intervenção imperial. O correspondente em Lisboa de El Pais garante que «o imperialismo espanhol está definitivamente liquidado». Mas a sua peremptória afirmação apenas evidência que ou desconhece o que seja o imperialismo ou pretende dissipar no berço temores que identifica em amplos sectores do povo português. A Espanha não tem mais colónias. Nem passa pela cabeça de qualquer governante espanhol conquistar Portugal pelas armas.
Mas a actuação do capital espanhol na América Latina configura uma forma de imperialismo. Embora diferente, mais discreta, a estratégia subjacente à política dos investimentos maciços em Portugal é igualmente inseparável de uma concepção imperialista das relações entre os povos. Alias, contrariamente ao que sustentam os apologistas da política de Zapatero, apresentada como social-democrata e progressista, ela, no fundamental caracteriza-se pela fidelidade ao neo-liberalismo e pelo alinhamento com o imperialismo.
O presidente do Governo de Madrid comprometeu-se nas vésperas das eleições que levaram o PSOE ao poder a retirar as tropas espanholas do Iraque. Esse foi um grande trunfo eleitoral. Cumpriu. Mas quase logo foram enviados para o Afeganistão forças do Exercito espanhol para ali combaterem, integradas no dispositivo da Nato, a insurreição em curso naquele pais. Ora essa é outra guerra imperialista.
A Espanha é - não devemos esquece-lo - um dos países da União Europeia que nos últimos anos tem colaborado mais activamente, através das suas forças armadas, com a estratégia de dominação mundial do EUA. O discurso de Zapatero tenta negar essa evidência. Mas os factos negam-lhe as palavras. Podem argumentar os defensores do iberismo que Portugal também enviou forças para a Bósnia, Afeganistão e o Iraque por decisão de sucessivos governos. Assim aconteceu. Mas a pequena dimensão desses contingentes é esclarecedora da diversidade de atitudes dos povos de Portugal e Espanha.
Sócrates é um medíocre ambicioso, profundamente reaccionário. No campo internacional as suas tomadas de posição reflectem a orientação transmitida por Washington. Mas está consciente de que o povo português conserva viva a memória da guerra colonial desaprovou desde o início as agressões ao Iraque e ao Afeganistão, mascaradas de intervenções em defesa da liberdade e da democracia. Daí o carácter inexpressivo da presença de militares portugueses naqueles dois países. Nem Cavaco ousaria dizer-lhes, como o fez o Rei de Espanha em visita às suas tropas, que estão a servir a Pátria e os mais nobres ideais humanistas.
Para terminar quero esclarecer que admiro muito a outra Espanha, a Espanha mestiça, nascida de culturas diferenciadas, a Espanha de Cervantes (o Quixote, lido e relido, continua a ser para mim um livro de cabeceira) e de Goya, de Dolores Ibarruri e Lister, a que se bateu contra o fascismo e hoje condena nas ruas o neo-liberalismo, as guerras imperiais e a monarquia ridícula e corrupta que as aplaude.
Essa Espanha, fraterna, revolucionaria, alinha, tenho a certeza, com aqueles, como eu, que apontam como farsa este alarido dos meios de comunicação social na campanha que desenterrou o espantalho do iberismo. Sou, como comunista, internacionalista. Mas aprendi nos combates da vida que o universal mergulha as raízes no nacional.
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