\ A VOZ PORTALEGRENSE: Henrique Barrilaro Ruas - Antologia

terça-feira, outubro 24, 2006

Henrique Barrilaro Ruas - Antologia

VISÃO DINÂMICA
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1 - Humanismo
Por mais bela que seja a visão estática da Cultura assim compreendida, é preciso atribuir-lhe um sentido. À visão estática sucederá a visão dinâmica, Se amamos a Cultura, para que a queremos nós? Pois bem: nós a queremos e lhe queremos muito porque a vamos pôr ao serviço do Homem.
A Cultura resulta num Humanismo. Ninguém como nós pode dar-lhe esse destino, pois ninguém como nós conhece a grandeza do Homem. O Cristianismo tudo subordina à Pessoa Humana, ser subsistente em si, dotado de inteligência e de vontade. Tem oportunidade a palavra de S. Paulo: «Omnia sunt vestra; vos autem Christi; Christus autem Dei». Esta subordinação de tudo à Pessoa Humana tem aspectos que por vezes ferem algumas sensibilidades, quando se afirma que a Pátria e a própria Igreja (no que tem de instituição humana) existem para ela. Sendo assim, nós compreendemos facilmente que também a Cultura deve pôr-se ao serviço do Homem. Porque o homem, na concepção cristã, é um valor com projecção eterna. A Cultura, servida pelos homens, criada pelos homens, subordina-se ao Homem, na hierarquia crista dos valores.
«Omnia sunt vestra...»
Mas como se lhe subordina? Qual a sua função? Ela é um meio de o homem se completar; digamos: de o homem se realizar. Uma cultura deve compreender uma educação física, uma educação intelectual e uma educação religiosa. Mas o sentido desta Semana dá à Cultura de que falamos um carácter intelectual. Essa serve a Pessoa Humana, porque satisfaz a sede de Verdade em que a inteligência se abrasa e lhe manifesta, com o fulgor da Verdade, a face eterna do Bem. Formar a inteligência nas disciplinas da Verdade é com efeito anunciar ao Homem aquele Bem em que a sua vontade tende a fixar-se.

2 - Sentido Social
Sobre este sentido da Cultura intelectual (lembremos que por hipótese essa Cultura é uma síntese) hão-de reflectir, numa atitude crítica, aqueles que sentem a gravidade dos grandes problemas sociais.
O Homem, ser independente, na dignidade pura da personalidade, é com efeito servido pela Cultura intelectual. Mas o homem - ser social, elemento duma colectividade?
Desta dúvida participamos nós, que sentimos a angústia do homem numa época que o esmaga, nós que vemos a urgência de impor à Questão Social a solução Crista, nós que vamos já concluindo pela necessidade duma doutrina política. Ao lado destes problemas de ordem social - perguntamos a nós próprios: - como é possível que cresça, serena e fria, a preocupação intelectual? Que vale a dignificação abstracta do Homem, se os homens são castigados pela tremenda agonia dum tempo apocalíptico?
E contudo nós, como católicos, temos de ultrapassar este momento de crise, esta crise de dúvida, esta febre que sobe sempre ao longo da ideia de Acção. Sim: nós compreendemos o nosso tempo e a funda inquietação dos seus martírios. Nós queremos a dignidade social do homem e enchemos o peito com uma sede insaciável de Justiça. Nós não esquecemos todo o malefício duma Cultura que vem definindo a linha desta Civilização anti-humana.
É então que nós, depois de amarmos a Cultura e o belo edifício das suas conclusões, vamos distinguir, da Ciência, que descobre, a Técnica, que aplica. E creio que só uma posição nos pode ser legítima: exigir que a Técnica se coloque ao serviço da Sociedade.
A Ciência Moderna permitiu à Técnica a substituição de milhões de operários por centenas de máquinas. Noutro aspecto, permitiu à indústria a produção sintética de substâncias naturais - e os que viviam do comércio destas sentiram a ameaça da fome.
Por outro lado aí está a exuberância dos armamentos modernos a marcar tragicamente, a ferro e fogo, a passagem duma Técnica inimiga do Homem e destruidora da Civilização. Que pensar diante deste espectáculo? (1)
O católico não deve apenas deplorar a grandeza das catástrofes: há-de procurar, na medida do seu alcance, a correcção da Técnica pelas leis da Moral. Parecerá estranho juntar duas palavras para desejar uma Técnica Cristã?...
Assim como a Ciência serve o homem como personalidade, essa Técnica servirá o homem como membro duma sociedade. Mas para isto a Ciência não basta, nem a Filosofia é decisiva, nem a Sociologia é suficiente. Repito que é necessária a Moral, ciência e arte eminentemente humana.
E que se dirá se passarmos, da simples consideração da Técnica ao serviço da Sociedade, à visão integral dos problemas sociais? As mesmas afirmações podem confirmar-se, alargadas em extensão e elevadas em alcance. Evidentemente toda a complexidade da Questão Social, última expressão prática dos problemas da nossa Civilização, não pode esperar da Cultura, mesmo na sua expressão técnica, uma solução cabal ou sequer uma tentativa de solução completa.
E no entanto, nós, universitários católicos, curvados nesta Semana sobre a amplitude dos problemas culturais, não podemos esquecer, não esquecemos, a nossa responsabilidade de elementos duma colectividade e marcadamente duma Nação.
Não nos desinteressamos, portanto, dos agudos problemas que ferem o corpo da Pátria. Não voltamos costas também às interrogações que sobem das almas na ânsia universal duma Renovação. Tanto vale dizer que não confinamos os nossos objectivos à construção duma Cultura, por mais perfeita que se nos apresente a sua visão rasgada.

3 - Última Síntese
Que concluir daqui? Que, acima da Cultura, acima da Técnica, acima das Ciências Sociais, nos é necessária uma nova Síntese da qual o nosso espírito logre distinguir os limites dos problemas e as linhas gerais das soluções; uma Síntese que englobe tudo o que respeita ao Homem, na visão integral da sua natureza e das suas aspirações.
Essa Síntese que nós queremos alcançar para compreendermos o Mundo e nos compreendermos a nós próprios, só a podemos possuir, graças, mais uma vez, à nossa qualidade de cristãos. Toda a interpretação do Mundo a da Vida que se confina nos limites do Natural é uma visão incompleta.
No seio do Universo, povoado de astros ardentes, uma outra chama crepita perpetuamente. «Esse alto lume» (como lhe chamou o Poeta) é o Homem, perpetuamente a interrogar, perpetuamente a responder. Toca a matéria, e duvida dela; disseca-a, e sente-a quase a esvair-se. Pensa - e duvida do Espírito; ama - e chama a tudo ilusão. Morre - e crê na imortalidade: sofre — e pergunta à Dor porque? Odeia - e sente a nostalgia do Bem; erra - e ama ansiosamente a Verdade; estuda - e enfastia-se do que sabe; sabe que érei - e sente-se escravizado a tudo; tem sede de Justiça, mas cria a Injustiça e vive nela, E contudo, ele pressente que não é um monstro. Qual o sentido de tudo o que sente, de tudo o que sabe. De tudo o que desconhece? Qual o sentido do sofrimento que o rasga e da alegria que o empolga? Qual o destino de si mesmo e a razão de tudo o que o rodeia? Por que lhe sabe a pó tudo o que é deste Mundo e saboreia o prazer do que nunca encontrou? Tudo lhe fala de mais-além; tudo lhe anuncia realidades futuras. No seio do Universo, o homem interroga e fica preso à Dúvida...
... Mas pressente. Quando não vê, visiona. Pois bem: do Alto lhe veio a grande resposta. Tudo o que lhe faltava se completou pela Mensagem reveladora.
Abriu-se o Mistério, e, no seio do Universo, o Homem pôde compreender o sentido total do Mundo e da Vida.
É a essa Mensagem - que é Verdade Revelada e Verbo Incarnado - que nós, universitários católicos, vamos buscar a Unidade da Síntese. À margem dela, sentimos como tudo se fragmenta... Com ela, todas as coisas se unificam. E a Unidade é para nós a Vida.

(1) Cf. O estudo de Daniel Rops no volume colectivo Para Além da Ciência, ed. Tavares Martins.
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Henrique Barrilaro Ruas
in, A Moeda O homem e Deus, pgs. 25 a 30, Cidade Nova, 1957