No dia do Centenário de Hergé
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Em 1936, Portugal foi o primeiro país do mundo a publicar tintim a cores. Foi o começo de uma curiosa relação de Hergé – que nasceu há 100 anos – com Adolfo Simões Müller
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Carlos Pessoa
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No final de Abril de 1936 Hergé recebeu em Bruxelas um envelope de Portugal. Ao abri-lo, encontrou alguns exemplares da revista O Papagaio e teve uma grande surpresa: viu pela primeira vez uma história de Tintim impressa a cores (Tintim na América).
"Fiquei encantado por ver os meus desenhos aparecerem a cores", diz Hergé numa carta que enviou a 12 de Maio desse ano ao padre Abel Varzim, que o contactara em Maio de 1935, em nome da publicação, para negociar a divulgação das histórias de Tintim.
O herói chama-se Tim-tim, é apresentado como repórter português de O Papagaio - na versão original é um repórter belga do Le Petit Vingtième - e tem como companheira uma cadela chamada Rom-Rom, de cor acastanhada (e não o cão Milú branco).
Mas o que verdadeiramente desagradou ao artista belga foi outra coisa. O editor português tinha remontado as pranchas, destruindo o efeito de suspense da narrativa na edição original. Hergé comenta a situação ("une petite remarque", escreve) lembrando que "os desenhos são concebidos como num folhetim para terminar em cada semana com um desenho palpitante destinado a prender a atenção do leitor".
Este incidente não chegou para comprometer as relações entre o criador de Tintim e a revista portuguesa, que divulgou mais oito aventuras do herói até ao final da sua existência, em Fevereiro de 1949. Além de efectuar a primeira publicação em quadricromia do mundo, O Papagaio foi também a primeira revista de um país não francófono a divulgar Tintim.Adolfo Simões Müller (1909-1989), que foi um dos directores da revista, é a peça-chave para explicar a curiosa relação que Hergé teve com Portugal.
Uma parte significativa da correspondência que os dois homens mantiveram ao longo de 30 anos foi recentemente tornada pública pelo holandês Jan Aarnout Boer (De Avonturen van Kuifje in Portugal), membro da associação Hergé Genootschap (Os Amigos de Hergé) que teve acesso aos arquivos da Fundação Hergé, na Bélgica."Para ser franco, a publicação prematura de Hergé em Portugal não teve impacto na sua obra ou na tradução dos álbuns para outras línguas", disse ao P2 Jan Boer. "Hergé achava piada que houvesse pessoas em Portugal interessadas nos seus livros, mas tanto para ele como para o seu editor [Casterman], estas traduções tinham pouco interesse."
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Carlos Pessoa
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No final de Abril de 1936 Hergé recebeu em Bruxelas um envelope de Portugal. Ao abri-lo, encontrou alguns exemplares da revista O Papagaio e teve uma grande surpresa: viu pela primeira vez uma história de Tintim impressa a cores (Tintim na América).
"Fiquei encantado por ver os meus desenhos aparecerem a cores", diz Hergé numa carta que enviou a 12 de Maio desse ano ao padre Abel Varzim, que o contactara em Maio de 1935, em nome da publicação, para negociar a divulgação das histórias de Tintim.
O herói chama-se Tim-tim, é apresentado como repórter português de O Papagaio - na versão original é um repórter belga do Le Petit Vingtième - e tem como companheira uma cadela chamada Rom-Rom, de cor acastanhada (e não o cão Milú branco).
Mas o que verdadeiramente desagradou ao artista belga foi outra coisa. O editor português tinha remontado as pranchas, destruindo o efeito de suspense da narrativa na edição original. Hergé comenta a situação ("une petite remarque", escreve) lembrando que "os desenhos são concebidos como num folhetim para terminar em cada semana com um desenho palpitante destinado a prender a atenção do leitor".
Este incidente não chegou para comprometer as relações entre o criador de Tintim e a revista portuguesa, que divulgou mais oito aventuras do herói até ao final da sua existência, em Fevereiro de 1949. Além de efectuar a primeira publicação em quadricromia do mundo, O Papagaio foi também a primeira revista de um país não francófono a divulgar Tintim.Adolfo Simões Müller (1909-1989), que foi um dos directores da revista, é a peça-chave para explicar a curiosa relação que Hergé teve com Portugal.
Uma parte significativa da correspondência que os dois homens mantiveram ao longo de 30 anos foi recentemente tornada pública pelo holandês Jan Aarnout Boer (De Avonturen van Kuifje in Portugal), membro da associação Hergé Genootschap (Os Amigos de Hergé) que teve acesso aos arquivos da Fundação Hergé, na Bélgica."Para ser franco, a publicação prematura de Hergé em Portugal não teve impacto na sua obra ou na tradução dos álbuns para outras línguas", disse ao P2 Jan Boer. "Hergé achava piada que houvesse pessoas em Portugal interessadas nos seus livros, mas tanto para ele como para o seu editor [Casterman], estas traduções tinham pouco interesse."
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Direitos por géneros
Quando começou a ser publicado em Portugal, o artista belga estava prestes a fazer 29 anos - nasceu exactamente há 100 anos, a 22 de Maio de 1907. Vivia a fase ascensional da sua carreira, ainda só tinha cinco das 23 histórias que imortalizariam Tintim.A internacionalização da sua obra era um fenómeno novo para si. Por isso, não surpreende que o criador belga recorra à Societé du Droit d"Auteur (Paris), fixando em 50 francos franceses o preço por episódio (o equivalente a uma dupla página dos álbuns a preto e branco).
Em 1937, Hergé delega em Jean-Louis Duchemin, secretário-geral do Syndicat de la Proprieté Artistique, a gestão dos seus direitos de autor, precisando que a redução do preço - agora negociada por Simões Müller e fixada em 35 francos franceses - só se aplicará a Tintim na América.
Outro episódio trazido à luz do dia pela correspondência entre Hergé, Abel Varzim e Müller diz respeito à intenção deste último lançar uma nova revista (Diabrete) para disputar o mercado a O Papagaio.
Em carta não datada (mas provavelmente do final de 1940 ou início do ano seguinte), Müller pede a concessão do exclusivo das aventuras da série Quick et Flupke, ressalvando que O Papagaio continuará a publicar Tintim se assim o entender.Hergé concorda, mas é notório que as suas preocupações imediatas são de outra ordem. A invasão da Bélgica pelas tropas de Hitler teve como consequência, no plano pessoal, o aprisionamento do seu irmão mais novo Paul Remi num campo de concentração alemão. Na resposta a Simões Müller, de 24 de Abril de 1941, pede-lhe para este enviar de vez em quando produtos alimentares não perecíveis (sardinhas de conserva, chocolate, biscoitos, etc.) ao irmão e, se possível, também para si próprio. O montante dispendido deveria ser descontado nos direitos de autor a pagar.
"Foi um nobre gesto da parte de Hergé", comenta Jan Boer. Mas os pacotes de alimentos nunca chegaram ao irmão. No final do período O Papagaio, quando o acerto de contas foi feito, constata-se que todas as encomendas foram enviadas para o próprio Hergé. Por outras palavras, a história dos envios para o irmão tem que ser um pouco rectificada."
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Direitos por géneros
Quando começou a ser publicado em Portugal, o artista belga estava prestes a fazer 29 anos - nasceu exactamente há 100 anos, a 22 de Maio de 1907. Vivia a fase ascensional da sua carreira, ainda só tinha cinco das 23 histórias que imortalizariam Tintim.A internacionalização da sua obra era um fenómeno novo para si. Por isso, não surpreende que o criador belga recorra à Societé du Droit d"Auteur (Paris), fixando em 50 francos franceses o preço por episódio (o equivalente a uma dupla página dos álbuns a preto e branco).
Em 1937, Hergé delega em Jean-Louis Duchemin, secretário-geral do Syndicat de la Proprieté Artistique, a gestão dos seus direitos de autor, precisando que a redução do preço - agora negociada por Simões Müller e fixada em 35 francos franceses - só se aplicará a Tintim na América.
Outro episódio trazido à luz do dia pela correspondência entre Hergé, Abel Varzim e Müller diz respeito à intenção deste último lançar uma nova revista (Diabrete) para disputar o mercado a O Papagaio.
Em carta não datada (mas provavelmente do final de 1940 ou início do ano seguinte), Müller pede a concessão do exclusivo das aventuras da série Quick et Flupke, ressalvando que O Papagaio continuará a publicar Tintim se assim o entender.Hergé concorda, mas é notório que as suas preocupações imediatas são de outra ordem. A invasão da Bélgica pelas tropas de Hitler teve como consequência, no plano pessoal, o aprisionamento do seu irmão mais novo Paul Remi num campo de concentração alemão. Na resposta a Simões Müller, de 24 de Abril de 1941, pede-lhe para este enviar de vez em quando produtos alimentares não perecíveis (sardinhas de conserva, chocolate, biscoitos, etc.) ao irmão e, se possível, também para si próprio. O montante dispendido deveria ser descontado nos direitos de autor a pagar.
"Foi um nobre gesto da parte de Hergé", comenta Jan Boer. Mas os pacotes de alimentos nunca chegaram ao irmão. No final do período O Papagaio, quando o acerto de contas foi feito, constata-se que todas as encomendas foram enviadas para o próprio Hergé. Por outras palavras, a história dos envios para o irmão tem que ser um pouco rectificada."
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Última batalha
O braço de ferro entre Varzim e Müller pelos direitos de Tintim conhece novos desenvolvimentos no início de 1943. A 25 de Janeiro, Hergé recebe uma carta muito contundente de Varzim, defendendo com unhas e dentes a sua publicação: "O nosso jornal - como pode constatar - é para a elite das famílias portuguesas. O Diabrete não passa de um jornal para as classes menos bem, pois para poder viver vende-se a metade do preço do nosso, não tendo mesmo tentado colocar-se ao nível do Papagaio."
As posições radicalizam-se, mas Hergé procura não desagradar a nenhum dos contendores. "É curioso ver como ele tenta encontrar uma solução que satisfaça as duas partes e manter-se amigo de ambos. Mas quando os dois querem os direitos de Tintim, isso é difícil", diz Boer. De facto, só com o desaparecimento de O Papagaio é que Tintim será finalmente publicado no Diabrete, a partir de 1949.
Simões Müller continua a cultivar a sua relação com o artista belga, que se traduz na publicação quase ininterrupta das histórias de Tintim. A última prancha de As Sete Bolas de Cristal é publicada a 29 de Dezembro de 1951 naquela revista e a 5 de Janeiro do ano seguinte é apresentada a primeira prancha de O Templo do Sol no Cavaleiro Andante.Na efémera revista Foguetão (13 números, em 1961), é a vez de Tintim no Tibete, que depois transitará para o Cavaleiro Andante. E quando a revista Zorro surge nas bancas (1962-1966), os leitores poderão ler as primeiras sequências de As Jóias de Castafiore.
É a última vez que Müller está associado à publicação da série franco-belga. A edição portuguesa da revista Tintim, lançada em 1968, já terá outros protagonistas.
De passagem, Müller trava a sua última batalha pelos direitos de Tintim e perde-a. Numa carta enviada a Hergé em Março de 1960, Müller pede a "intervenção" de Hergé para evitar que "outro editor português faça uma edição que eu me proponho fazer há muito tempo e sobre a qual julgo ter um indiscutível direito de prioridade".A resposta de Hergé chega em 22 de Março: Casterman, o editor belga, reconhece em Müller um "amigo da primeira hora", mas "a lógica dita que seja utilizada a edição brasileira igualmente em Portugal". Assim será até 1988, quando Tintim passa a ser editado pela Verbo.
O braço de ferro entre Varzim e Müller pelos direitos de Tintim conhece novos desenvolvimentos no início de 1943. A 25 de Janeiro, Hergé recebe uma carta muito contundente de Varzim, defendendo com unhas e dentes a sua publicação: "O nosso jornal - como pode constatar - é para a elite das famílias portuguesas. O Diabrete não passa de um jornal para as classes menos bem, pois para poder viver vende-se a metade do preço do nosso, não tendo mesmo tentado colocar-se ao nível do Papagaio."
As posições radicalizam-se, mas Hergé procura não desagradar a nenhum dos contendores. "É curioso ver como ele tenta encontrar uma solução que satisfaça as duas partes e manter-se amigo de ambos. Mas quando os dois querem os direitos de Tintim, isso é difícil", diz Boer. De facto, só com o desaparecimento de O Papagaio é que Tintim será finalmente publicado no Diabrete, a partir de 1949.
Simões Müller continua a cultivar a sua relação com o artista belga, que se traduz na publicação quase ininterrupta das histórias de Tintim. A última prancha de As Sete Bolas de Cristal é publicada a 29 de Dezembro de 1951 naquela revista e a 5 de Janeiro do ano seguinte é apresentada a primeira prancha de O Templo do Sol no Cavaleiro Andante.Na efémera revista Foguetão (13 números, em 1961), é a vez de Tintim no Tibete, que depois transitará para o Cavaleiro Andante. E quando a revista Zorro surge nas bancas (1962-1966), os leitores poderão ler as primeiras sequências de As Jóias de Castafiore.
É a última vez que Müller está associado à publicação da série franco-belga. A edição portuguesa da revista Tintim, lançada em 1968, já terá outros protagonistas.
De passagem, Müller trava a sua última batalha pelos direitos de Tintim e perde-a. Numa carta enviada a Hergé em Março de 1960, Müller pede a "intervenção" de Hergé para evitar que "outro editor português faça uma edição que eu me proponho fazer há muito tempo e sobre a qual julgo ter um indiscutível direito de prioridade".A resposta de Hergé chega em 22 de Março: Casterman, o editor belga, reconhece em Müller um "amigo da primeira hora", mas "a lógica dita que seja utilizada a edição brasileira igualmente em Portugal". Assim será até 1988, quando Tintim passa a ser editado pela Verbo.
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Carlos Pessoa
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Hergé achou a ideia boa, mas Müller não encontrou apoios
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Carlos Pessoa
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Hergé achou a ideia boa, mas Müller não encontrou apoios
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Adolfo Simões Müller tinha "um plano gigantesco" e em Abril de 1939 escreveu uma carta a Hergé com a proposta: fazer-se uma aventura de Tintim em Portugal.
O filho de Simões Müller, Luís Müller, lembra-se do projecto. "Hergé chegou a falar com o meu pai, pedindo-lhe informação sobre a História de Portugal", contou ao P2.
Também se lembra de ouvir o pai dizer que a ideia era encontrar, para a história, um elo de ligação entre o Brasil, Portugal e a Índia. A resposta do criador belga foi prudente.
Achou boa a ideia, mas manteve alguma distância, pois queria assegurar o controlo das coisas.
Nomeou seu representante Jean-Louis Duchemin, do Syndicat de la Proprieté Artistique (SPA, Paris) que apresentou uma estimativa de custos a Simões Müller e propôs uma repartição dos encargos: 10 por cento do preço de cada álbum teria de ser suportado pelo português, e 40 por cento desse montante entregue directamente ao SPA.
A ideia não teve seguimento porque não houve capacidade financeira para investir no projecto, nem possibilidade de encontrar apoios públicos ou privados.
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