\ A VOZ PORTALEGRENSE: Jorge Mangerona

sexta-feira, janeiro 16, 2015

Jorge Mangerona

Apresentação da Revista 'Plátano' em 13/12/2014
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“Raúl Cóias o poeta da Cidade Triste”

Falar sobre o Raúl Cóias é tarefa difícil face à complexidade do seu carácter, da poética e transcendentalidade que da sua obra emana. Falar do Raúl no enquadramento da nossa cidade, da Cidade Triste como lhe chamei, torna-se ainda mais difícil.
As cidades, construções milenares, operaram uma compressão espacial que acelerou as mudanças temporais, o que nem sempre percebemos, e são, simultaneamente, uma âncora que nos permite não perder de vista os laços com o passado mas também perspectivar o futuro.
Não havendo, até ao momento, sinais que nos garantam raízes no mundo antigo, nem sinais dos bárbaros que o levaram à derrocada, podemos tentar encontrar indícios da forja da nossa identidade na baixa Idade Média, não obstante todos os esforços de muitos em nos encontrar raízes mais vetustas. O Padre Sotto Mayor, por exemplo, embora céptico, refere um nobre cavaleiro e fidalgo bretão que, ali para os lados de São Cristóvão, edificou uma fortaleza que teria sido o primeiro edifício que houve na cidade.
Começa assim a nossa história, nebulosa, como os nevoeiros das manhãs que ocultam a cidade, deixando de fora os pináculos da Sé, sinais da nossa perenidade…por enquanto.
Saltemos na História, e façamos apenas duas pausas, uma para referir a construção da Catedral, que o saudoso Padre Patrão tão bem descreve, e outra, mais tarde, para sublinhar o aparecimento de casas senhoriais que pareciam augurar um futuro, não florentino ou veneziano, mas de destaque entre os nossos pares peninsulares.
Entretanto chegámos ao século XX e estarão a pensar que nem uma vez falei do povo, esse povo que certamente muito suor e sangue derramou para erigir a cidade, património construído.
A cidade são as pessoas, sejam os aldeãos de Santo Amaro, que viam passar o filho do Ramalho de sapatos novos, sejam os citadinos de Portalegre que o viam envolto em capa e batina. As pedras e o património construído são os ornamentos, as pessoas a Vida, embora às vezes pareça o contrário, e a História ensina que as cidades, por maior que seja o seu esplendor, também morrem e nem sempre de pé.
Ainda e mais uma vez a cidade que o Raúl trazia consigo, cuja imagem não era afectada pelas minudências que a geografia ensina e a história por vezes distorce. Para situarmos a chegada do Cóias a Portalegre e os efeitos que teve na sua personalidade, peço-vos um pouco mais de paciência, para esta divagação pessoal pela história lagóia. Não sofro da nostalgia pelo passado que muitos portalegrenses professam, porventura iludidos por uma grandeza que, em minha opinião, nunca existiu. Um emérito académico portalegrense traçou, um dia destes noutro fórum, um rápido retrato dos ciclos económicos de depressão e crescimento que afectaram a cidade e que não permitiram que passássemos de um estado de mediania persistente e desesperante. Curiosamente, é no final dos anos cinquenta, altura em que o Raúl chega a Portalegre, que atingimos o máximo de população no concelho (um parêntesis para referir que o primeiro censo data de 1864) 28384 habitantes em 1960, um aumento de mais de 50% relativamente ao início do século XX. Este aumento populacional não foi acompanhado, quanto a mim, por uma melhoria das condições de vida nomeadamente das populações mais desfavorecidas… A miséria, a doença, a pobreza e o alcoolismo eram forte marca da época em que o pé descalço era habitual. Apenas os bandos de gaiatos que enxameavam as ruas mais antigas do burgo, animavam com risos e gritos, e a ingenuidade que a idade permite, uma cidade, uma cidade triste. Podemos tentar todo o tipo de explicação para este fado, que nem o maravilhoso enquadramento paisagístico alegra, muitas vezes parece que lhe dá só tons menores ou porque limita a amplitude do arco solar que desponta na Serra de Portalegre e, todos os dias, se esconde na Serra da Penha, ou porque o estreitamento das ruas o parece aprisionar no Verão e o liberta no Inverno dando lugar a um vento sibilino e frio que enregela o corpo e enfraquece as almas, ou será do vento suão… ou ainda por tudo isto; a verdade é que o lagóia não é dado a grandes entusiasmos ou explosões de alegria. Podem contrapor com as festas populares e concedo alguma alegria nos santos populares que as ruas espontaneamente organizavam ou na festa dos aventais. Mas a maior parte das festas populares eram condicionadas pelo seu cariz religioso e não tenho eco das risadas espontâneas ou da alegria genuína proveniente, por exemplo, das tais casas senhoriais de que esperaria festas sumptuosas e, porque não, com algumas concessões as pagode. Esse, o pagode, tinha os bailes da Robinson, do Alentejo, etc…um ritual mais socializante do que um exercício de alegria; faziam, no entanto, parte da memória do Raúl que, com outros amigos, conseguia ainda aceder a outros círculos atendendo ao seu estatuto e, por vezes, a alguma malandrice.
O Raúl vinha de uma aldeia não muito diferente, em termos sociológicos, da cidade que acabo de descrever (outros terão muito justamente opinião diversa). Talvez com algumas diferenças telúricas, a planície, a largueza de horizontes e um silêncio feito da miríade de sons que a natureza entretece. A cidade, que se encerra em horizontes limitados, oferece outro tipo de silêncio como escreve o Raúl e cito: “ “Portalegre” era um murmúrio de fonte no silêncio mais oval; na maioria das ruas a quietude era tal, que lembrava a paz de um monte (…) ” mais adiante “(…) Às vezes havia lapsos de tempo, sopros de espiritualidade quando o acorde nostálgico de um sino se desfazia no ar. Ficávamos sem destino no horizonte a boiar” A percepção deste silêncio, os contactos com os amigos de adolescência e do liceu, com o saber que nos leva à interrogação de quem somos e… a boémia, formam uma personalidade complexa, de certa forma misteriosa, que é a do Raúl.
Esta singela evocação do Raúl Cóias Dias, com quem convivi diariamente quinze anos, é uma evocação pessoal que também mergulha na minha infância, na minha rua e na cidade de outros tempos, e é fruto de muitas conversas e vivências conjuntas. Optei, por exemplo, por abordar de forma superficial a faceta desportiva do poeta e passo ao lado de alguma boémia que terá feito história. O objectivo deste panegírico e do que a Plátano publica é dar a conhecer a obra deste portalegrense de adopção, e de excepção, que não poderá cair no esquecimento.
Qualquer texto do Raúl está imbuído duma força poética, e revela uma força interior, para muitos impensável, que lhe trazia incompreensões e, nalguns casos, mesmo desdém. A religiosidade que professava, gerava inclusive alguns equívocos porque o levava a extremos de grande despojamento pessoal:” Parece mentira…é verdade/Um príncipe como eu…de mão estendida…/Só porque nas sombras da cidade/Deixei de tactear a minha vida”. Um homem despojado mas também sentido e consciente das suas circunstâncias. Podíamos ainda falar da incompreensão que a admiração por Régio suscitava: imagine-se o Raúl a declamar Régio e a perorar sobre a sua obra num botequim ou numa tasca, por exemplo, e sem ofensa para os locais, na Ervideira…Esta admiração não é só por ele admitida como, no texto “A Casa de José Régio”, que a revista agora revisita, se refere o momento em que se conheceram, 20 de Maio de 1966. Escreve o Raúl: “ A memória dessa tarde, que eu passei em sua casa, ainda hoje em mim arde, viva, como uma brasa, ainda hoje me incendeia a cinza de certos dias e me serve de conforto nas minhas noites mais frias…Sim, tive esse privilégio. E a esse encontro furtivo, tudo quanto sou o devo…” Estão definidos o tom, o compasso, a rima que vão determinar a poética do Raúl Dias. Foi sobre ela que me debrucei mais atentamente até porque vivi o quotidiano do vate e do professor Raúl, este ainda mais triste porque se apregoava o “novo professor”, enredado num labirinto kafkiano de papéis, inconciliável com uma personagem que nos guardanapos de papel registava pedaços de uma obra em que as constantes são a procura do absoluto e do transcendente.
A admiração por Régio ia além da obra, admirava a personagem e a sua solidão. Conciliar a vida familiar e o supremo amor pelas filhas, a vida profissional, a obra que se projecta e em que se projecta e a solidão que esta exige são tarefas de gigante em que muitos soçobraram. E o Raúl agigantava-se se bem que, perto do final prematuro, que parecia prever, a obra se impusesse bem como a consciência da efemeridade do Ser, da importância da Vida e da Omnipotência de Quem a concedeu. No Fim volta a Portalegre, junta-se aos pais, ali à Boavista onde decerto de vez em quando fala com o Régio.
“Cruzo ambas as mãos sobre o meu peito
E nas mãos de Deus, me entrego docemente
Que este poema seja o poema do meu leito
A Portalegre, cidade, eternamente
Que o Senhor, nas mãos de quem repouso
Me dê, no céu, o gozo
De o escrever na sua luz plena
Como Deus, quis, numa noite amena
Em que estes versos fiz”

Adeus Raúl, Poeta da Cidade ainda triste, adeus…adeus a todos os que garantiram a perenidade da Cidade que, um dia, acredito, fará jus ao nome original, Portus Alacer, a Cidade Alegre.
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