\ A VOZ PORTALEGRENSE: António Martinó de Azevedo Coutinho

domingo, abril 04, 2010

António Martinó de Azevedo Coutinho

LER DEVIA SER PROIBIDO

O convite é simples e tem duas fases.
1 – Comece-se pelo visionamento do pequeno vídeo a seguir proposto. Depois, quem gostar da provocação que leia o restante. É que o vídeo significa, apenas, a interpretação multimédia do (pre)texto original, literário, um pouco mais longo.
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2 – Se a leitura continuou, é porque a curiosidade despertada pelo vídeo foi suficiente. Este trabalho consistiu na sumária adaptação (ou interpretação) de um artigo publicado numa antologia brasileira e destinou-se a integrar uma campanha de incentivo à leitura, da iniciativa da Universidade de Salvador. O exemplo vem, portanto, do Brasil irmão mas devia ser seguido por aqui, onde a leitura -como tudo o mais!- também está em crise.
O artigo original surgiu inserido nas páginas 71 a 73 da antologia intitulada A formação do leitor: pontos de vista, organizada por J. Prado e P. Condini (Editora Argus, Rio de Janeiro, 1999).
A sua autoria pertence a Guiomar Grammon, brasileira de Ouro Preto, Minas Gerais, onde nasceu em 1963. Licenciada em História e Doutorada em Literatura Brasileira, é uma autora premiada, tendo publicado artigos em jornais e diversas revistas científicas brasileiras. Lecciona Filosofia da Arte em cursos de Filosofia e Teatro e já organizou dois congressos internacionais sobre o Barroco, na cidade de Ouro Preto. Realizou leituras com reconhecido sucesso público no Brasil, em Cuba, na Alemanha e em França. Devia vir com urgência -acrescento eu- a Portugal...
Este é, na íntegra, o texto que provocou o vídeo. Apenas procurei traduzi-lo em “português pré-acordo ortographico”. É o meu ligeiro e subversivo contributo pessoal, para além da imperiosa partilha deste texto tão belo quanto inquietante.
António Martinó Coutinho
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LER DEVIA SER PROIBIDO

A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.
Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal o sustinha e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode tornar-se um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, dedicar-se-ia ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o Conhecer. Mas para quê conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Transportam-nos a paraísos misteriosos, fazem-nos enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Fazem-nos acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar as nossas cruas realidades.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos; isso pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias; isso pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos demasiado conscientes dos seus direitos políticos num mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam, se todos se pusessem a articular bem as suas demandas, a fincar a sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista da sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projectos, manuais, etc.
Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incómodas. E esse é o tapete mágico, o pó de perlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metropolitanos, ou no silêncio da alcova... ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.
Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.
Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos...
A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna colectivo o individual e público o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar a sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.
Guiomar de Grammon