Fernando J. B. Martinho
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Foi um António Lobo Antunes que disse ter «o maior orgulho em ser português» e ainda hoje sempre se «comover» quando recorda o verso do nosso poeta maior, «esta é a ditosa pátria minha amada», o que na sexta-feira, 25, no claustro do Mosteiro dos Jerónimos, recebeu das mãos dos Presidentes do Brasil e de Portugal o Prémio Camões. O escritor, falando de improviso, referiu-se a alguns daqueles a quem o galardão foi anteriormente atribuído, bem como a outros grandes escritores de língua portuguesa, dos vários países e de todas as épocas. Neto de brasileiro de Belém do Pará, como o Presidente Cavaco Silva referiu na sua intervenção – e o Presidente Lula da Silva também sublinhou – Lobo Antunes lembrou o seu tempo de guerra, em Angola, a ligação entre os povos, sobrelevando a ditadura e o colonialismo, com a emoção transparecendo de muitas das certeiras palavras que disse. Em nome do júri do prémio, no valor de cem mil euros, falou da obra do romancista o prof., ensaísta, crítico e nosso colaborador Fernando J. B. Martinho, cujo texto aqui publicamos na íntegra.
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Em busca do Livro absoluto
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FERNANDO J. B. MARTINHO
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A publicação, em 2005, das cartas que António Lobo Antunes escreveu à mulher, de Angola, em organizaçãodas suas filhas, Maria José e Joana, foi um dos grandes acontecimentos do ano literário. As «cartas da guerra», assim designadas pelas responsáveis da edição, deram-nos a conhecer não apenas o confronto de um jovem oficial médico com o absurdo da guerra, a força gritada de uma paixão dolorosamente distante do seu objecto, mas também, e sobretudo, um escritor em processo de formação, procurando linhas de rumo, entre a avidez e a obsessão das leituras e o ensaiar tumultuoso da escrita.
Em 1971, quando essa correspondência se inicia, António Lobo Antunes está perto de atingir os 30 anos. Virá apublicar o seu primeiro livro oito anos depois, e o amadurecimento que, em circunstâncias particularmente difíceis,experimentou em Angola, não deixará de se reflectir, a diversos níveis, na sua obra, e com especial incidência nasua obra inicial, aquela que definira, segundo o próprio autor, um ciclo de aprendizagem. A aprendizagem vinha,certamente, de muito longe, mas é nos anos da guerra que ela começa verdadeiramente a ganhar forma, para, depois, se revelar, em irreprimível explosão, a partir de 1979.
Ao rever os romances do ciclo de aprendizagem, não pode deixar de surpreender o êxito e que, de imediato, eles alcançaram. Na 2.ª edição de Conhecimento do Inferno, de 1980, encontro os seguintes dados, eloquentes, em relação aos dois livros anteriores: cinco edições de Memória de Elefante, entre Julho de 1979 e Julho do ano seguinte; cinco edições de Os Cus de Judas, entre Dezembro de 1979 e Agosto de 1980. Como explicar este sucesso tão clamoroso senão pela novidade que os romances de António Lobo Antunes então representaram indo ao encontro das expectativas dos leitores a braços com a ressaca, ou ressacas, do período pós-revolucionário? O que agarrou, e de modo muito forte, os leitores da época, estou em crer, foi o ímpeto torrencial da escrita, o inusitado das imagens, a proliferação das metáforas, a desinibida frontalidade da linguagem, o impressivo verismo das situações e dos diálogos, e o reconhecerem-se, eles, leitores, no retraio que lhes era oferecido da sociedade em tensão permanente que era a de um e de outros.
Quanto à irradiação internacional da sua obra, ela levaria ainda algum tempo a concretizar-se, mas, se nos lembrarmos que a estreia de Lobo Antunes se deu há menos de 30 anos, não poderemos deixar de reconhecer que tudo, afinal, se passou muito rapidamente, tendo em vista a projecção que a sua obra tem hoje em dia nos mais diversos países, e, saliente-se, sem ter precisado da locomotiva que Pessoa, indo à frente, em muitos casos terá representado. A este respeito, não oferece dúvidas que, na história do Prémio Camões, com António Lobo Antunes estamos perante um dos autores que melhor cumpre o que foram os objectivos dos criadores do galardão, segundo os quais ele visa expressar «o apreço e a homenagem da comunidade a um escritor que, pela sua obra, tenha contribuído para o engrandecimento e a projecção da literatura em Português». E foi isso que precisamente lhe quis manifestar o Júri deste Prémio, constituído por Letícia Malard, Maria de Fátima Marinho, Domício Proença Filho, Francisco Noa, João Melo e por mim próprio.
Numa das mais recentes entrevistas, fala António Lobo Antunes, a propósito da dificuldade de traduzir os seus livros, do que seria a sua qualidade musical. Essa proximidade em relação à música não é de agora, não se mostra apenas naqueles livros que mais se afastam da matriz tradicional do romance, e que teriam, antes, a ver com o «poema», ou mesmo, a «visão». Basta abrir um dos romances do princípio, digamos, Os Cus de Judas, para chegar até nós aquele «alar de melodia» de que falava José Gomes Ferreira. A marcação rítmica das frases é qualquer coisa que, de imediato, se percebe, se sente e nos envolve. As palavras deslizam nas suas combinações sortílegas, no equilíbrio que estabelecem entre si, nas cadências que lhes dão espessura, visibilidade. E mesmo aquelas longas enumerações a que os primeiros romances são tão propensos têm a sustentá-las, para lá da melopeia encantatória com que nos seduzem e fascinam, um princípio de ordem, orgânico, que nega a sua aparente caoticidade.
Um grande poeticista russo, Mikhail Bakhtine, disse um dia que «só na poesia a língua revela todas as suas potencialidades, pois as exigências a seu respeito são aqui levadas ao mais alto grau». Não é difícil concordar com Bakhtine. Mas só em parte, acrescentaria eu. A verdade é que, independentemente da construção de mundos possíveis, e de tudo o que isso implica, que seria o principal objectivo da ficção narrativa, muitos romancistas não têm em menor conta, no seu trabalho, a língua, e a língua em todos os seus «aspectos», em todos os seus «elementos», em todos os seus «matizes». A preocupação com a linguagem é neles uma evidência, e, sentimos uma necessidade. De resto, os grandes criadores literários sempre se sentiram mal nos espartilhos dos géneros, e estenderam até aos limites do possível as suas fronteiras, porosas, ou pura e simplesmente os desconheceram. O romance, se romance escrevem, tende a ser sempre, nas suas mãos, outra coisa, romance outro, que exige do leitor a utilização da chave que cada texto lhe fornece, como lembra António Lobo Antunes. Vejam-se, para não ir mais longe, no âmbito lusófono. Grande Sertão: Veredas, do admirável Guimarães Rosa, ou Nós, os do Makulusu, do anterior Prémio Camões, Luandino Vieira. Ou, se quisermos sair do romance, atente-se naquela «grande certeza sinfónica» que é a prosa de Pessoa no Livro do Desassossego, falando de António Vieira, para melhor falar de si, do uso sumptuoso que faz desta língua que é a nossa.
Depois, especialmente, de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, de 2000, que se apresenta expressamente, e em claro desafio, como «poema», tem início um novo ciclo na obra de António Lobo Antunes. Aqui se torna cada vez mais nítido o propósito do autor, manifestado em diversas ocasiões, de «transformar a arte do romance», implicando essa transformação uma desvalorização da «história», da «intriga», da fixação nos «temas», por mais importantes que sejam, e exigindo, da nossa parte, uma nova forma de leitura que mais do que ler é viver os textos, apanhá-los como se diz de uma doença que se apanha. Aquela consciência, que vem, praticamente, já dos primeiros romances, de que nunca se consegue chegar ao Romance, ao Livro que se quer escrever, avoluma-se e é ela que, em larga medida, no que significa de insaciável insatisfação, está por detrás da imparável criação de novas ficções em António Lobo Antunes.
Já se anuncia, para breve, um novo livro depois de O Meu Nome é Legião, de 2007, O Arquipélago da Insónia, e um outro vai tomando forma.
O que António Lobo Antunes persegue, obedecendo a esse incessante ímpeto criador, é, afinal, o Livro absoluto prometido em cada novo exercício de escrita e que se sabe inalcançável. Essa luta sem tréguas, que não admite desistências, terá estado entre as muitas razões que levaram o júri do Prémio Camões a atribuir-lhe o Prémio em 2007.
in, Jornal de Letras, 8 Destaque, 30 Julho - 12 Agosto 2008
A publicação, em 2005, das cartas que António Lobo Antunes escreveu à mulher, de Angola, em organizaçãodas suas filhas, Maria José e Joana, foi um dos grandes acontecimentos do ano literário. As «cartas da guerra», assim designadas pelas responsáveis da edição, deram-nos a conhecer não apenas o confronto de um jovem oficial médico com o absurdo da guerra, a força gritada de uma paixão dolorosamente distante do seu objecto, mas também, e sobretudo, um escritor em processo de formação, procurando linhas de rumo, entre a avidez e a obsessão das leituras e o ensaiar tumultuoso da escrita.
Em 1971, quando essa correspondência se inicia, António Lobo Antunes está perto de atingir os 30 anos. Virá apublicar o seu primeiro livro oito anos depois, e o amadurecimento que, em circunstâncias particularmente difíceis,experimentou em Angola, não deixará de se reflectir, a diversos níveis, na sua obra, e com especial incidência nasua obra inicial, aquela que definira, segundo o próprio autor, um ciclo de aprendizagem. A aprendizagem vinha,certamente, de muito longe, mas é nos anos da guerra que ela começa verdadeiramente a ganhar forma, para, depois, se revelar, em irreprimível explosão, a partir de 1979.
Ao rever os romances do ciclo de aprendizagem, não pode deixar de surpreender o êxito e que, de imediato, eles alcançaram. Na 2.ª edição de Conhecimento do Inferno, de 1980, encontro os seguintes dados, eloquentes, em relação aos dois livros anteriores: cinco edições de Memória de Elefante, entre Julho de 1979 e Julho do ano seguinte; cinco edições de Os Cus de Judas, entre Dezembro de 1979 e Agosto de 1980. Como explicar este sucesso tão clamoroso senão pela novidade que os romances de António Lobo Antunes então representaram indo ao encontro das expectativas dos leitores a braços com a ressaca, ou ressacas, do período pós-revolucionário? O que agarrou, e de modo muito forte, os leitores da época, estou em crer, foi o ímpeto torrencial da escrita, o inusitado das imagens, a proliferação das metáforas, a desinibida frontalidade da linguagem, o impressivo verismo das situações e dos diálogos, e o reconhecerem-se, eles, leitores, no retraio que lhes era oferecido da sociedade em tensão permanente que era a de um e de outros.
Quanto à irradiação internacional da sua obra, ela levaria ainda algum tempo a concretizar-se, mas, se nos lembrarmos que a estreia de Lobo Antunes se deu há menos de 30 anos, não poderemos deixar de reconhecer que tudo, afinal, se passou muito rapidamente, tendo em vista a projecção que a sua obra tem hoje em dia nos mais diversos países, e, saliente-se, sem ter precisado da locomotiva que Pessoa, indo à frente, em muitos casos terá representado. A este respeito, não oferece dúvidas que, na história do Prémio Camões, com António Lobo Antunes estamos perante um dos autores que melhor cumpre o que foram os objectivos dos criadores do galardão, segundo os quais ele visa expressar «o apreço e a homenagem da comunidade a um escritor que, pela sua obra, tenha contribuído para o engrandecimento e a projecção da literatura em Português». E foi isso que precisamente lhe quis manifestar o Júri deste Prémio, constituído por Letícia Malard, Maria de Fátima Marinho, Domício Proença Filho, Francisco Noa, João Melo e por mim próprio.
Numa das mais recentes entrevistas, fala António Lobo Antunes, a propósito da dificuldade de traduzir os seus livros, do que seria a sua qualidade musical. Essa proximidade em relação à música não é de agora, não se mostra apenas naqueles livros que mais se afastam da matriz tradicional do romance, e que teriam, antes, a ver com o «poema», ou mesmo, a «visão». Basta abrir um dos romances do princípio, digamos, Os Cus de Judas, para chegar até nós aquele «alar de melodia» de que falava José Gomes Ferreira. A marcação rítmica das frases é qualquer coisa que, de imediato, se percebe, se sente e nos envolve. As palavras deslizam nas suas combinações sortílegas, no equilíbrio que estabelecem entre si, nas cadências que lhes dão espessura, visibilidade. E mesmo aquelas longas enumerações a que os primeiros romances são tão propensos têm a sustentá-las, para lá da melopeia encantatória com que nos seduzem e fascinam, um princípio de ordem, orgânico, que nega a sua aparente caoticidade.
Um grande poeticista russo, Mikhail Bakhtine, disse um dia que «só na poesia a língua revela todas as suas potencialidades, pois as exigências a seu respeito são aqui levadas ao mais alto grau». Não é difícil concordar com Bakhtine. Mas só em parte, acrescentaria eu. A verdade é que, independentemente da construção de mundos possíveis, e de tudo o que isso implica, que seria o principal objectivo da ficção narrativa, muitos romancistas não têm em menor conta, no seu trabalho, a língua, e a língua em todos os seus «aspectos», em todos os seus «elementos», em todos os seus «matizes». A preocupação com a linguagem é neles uma evidência, e, sentimos uma necessidade. De resto, os grandes criadores literários sempre se sentiram mal nos espartilhos dos géneros, e estenderam até aos limites do possível as suas fronteiras, porosas, ou pura e simplesmente os desconheceram. O romance, se romance escrevem, tende a ser sempre, nas suas mãos, outra coisa, romance outro, que exige do leitor a utilização da chave que cada texto lhe fornece, como lembra António Lobo Antunes. Vejam-se, para não ir mais longe, no âmbito lusófono. Grande Sertão: Veredas, do admirável Guimarães Rosa, ou Nós, os do Makulusu, do anterior Prémio Camões, Luandino Vieira. Ou, se quisermos sair do romance, atente-se naquela «grande certeza sinfónica» que é a prosa de Pessoa no Livro do Desassossego, falando de António Vieira, para melhor falar de si, do uso sumptuoso que faz desta língua que é a nossa.
Depois, especialmente, de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, de 2000, que se apresenta expressamente, e em claro desafio, como «poema», tem início um novo ciclo na obra de António Lobo Antunes. Aqui se torna cada vez mais nítido o propósito do autor, manifestado em diversas ocasiões, de «transformar a arte do romance», implicando essa transformação uma desvalorização da «história», da «intriga», da fixação nos «temas», por mais importantes que sejam, e exigindo, da nossa parte, uma nova forma de leitura que mais do que ler é viver os textos, apanhá-los como se diz de uma doença que se apanha. Aquela consciência, que vem, praticamente, já dos primeiros romances, de que nunca se consegue chegar ao Romance, ao Livro que se quer escrever, avoluma-se e é ela que, em larga medida, no que significa de insaciável insatisfação, está por detrás da imparável criação de novas ficções em António Lobo Antunes.
Já se anuncia, para breve, um novo livro depois de O Meu Nome é Legião, de 2007, O Arquipélago da Insónia, e um outro vai tomando forma.
O que António Lobo Antunes persegue, obedecendo a esse incessante ímpeto criador, é, afinal, o Livro absoluto prometido em cada novo exercício de escrita e que se sabe inalcançável. Essa luta sem tréguas, que não admite desistências, terá estado entre as muitas razões que levaram o júri do Prémio Camões a atribuir-lhe o Prémio em 2007.
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