Endovélico
A terra está húmida das últimas chuvas. Só se ouvem os passos dos peregrinos no caminho que sobe até à Rocha da Mina, uma intrigante formação rochosa que lembra um animal de tamanho bíblico em pose de esfinge. Lá em cima, a paisagem alentejana serpenteada pelas águas do rio Lucefecit parece vir da origem dos tempos. Os irmãos da Confraria da Rosa e do Templo erguem os braços ao céu, numa prece silenciosa ao deus Endovélico. «Voltamo-nos para a Natureza e agradecemos a beleza e a luz. Este fluir com a vida foi a primeira religião do Homem.»
Um galo de penas coloridas é solto, junto às pedras que os arqueólogos acreditam ter sido um altar de sacrifícios há vários milénios. Para nós, o ritual é como uma peça de teatro. «O galo simboliza o acordar, o renascer», explica João Crisóstomo, membro da Contraria. «Sempre vi o Endovélico com um corpo humano e uma cabeça de galo. Mas é uma visão pessoal.» Também acha «curioso» associar o nome de Portugal a «Porto Galo» ou «Porto Graal». Com os olhos azuis penetrantes, de águia, varre o cenário em redor. «Este é um local onde pessoas como nós vêm buscar forças telúricas através de orações espontâneas. Os povos antigos, do tempo do Endovélico, tinham esta relação privilegiada com as forças da terra.»
O Alandroal conserva na paisagem vestígios ligados a deuses pré-romanos, celebrados pelos povos que passaram pela região antes da era cristã. Escavações arqueológicas em São Miguel da Mota revelam que o local já foi um grande santuário do Endovélico, deus indígena «cristianizado» pelos romanos a partir do século I. Em 2002, foram descobertas seis esculturas, entre as quais uma Cariátide, provando que outrora houve ali «um edifício com uma certa dignidade», segundo o arqueólogo Amílcar Guerra, que dirigiu estas investigações. E muitos tesouros ainda podem estar escondidos. A falta de escavações nos arredores de Vila Viçosa, terra de mármores, «pode camuflar eventuais surpresas», como adverte Manuel Calado, que elaborou a Carta Arqueológica do Alandroal.
Orgias no templo
A São Miguel da Mota todos os anos acorrem grupos de pagãos em Junho, por altura do solstício de Verão, num «caminho do silencio» que também passa por Castelinho ou Outeiro da Águia, «outros locais ainda marcados por ancestrais cultos animistas». O ritual envolve a libertação de pombos, leitura de augúrios no voo das aves (à semelhança dos antigos oráculos) e votos de saúde. «Acreditamos que Endovélico nos ajuda na cura, e os que lá vão fazer votos têm tido respostas aos pedidos. Mas para isso é preciso a tal fé dos pagãos», salienta Isabel Andrade, presidente da Associação Cultural Pagã.
Ao Endovélico, «entidade infernal e benfazeja», atribuem-se múltiplos poderes, desde protector da região a deus da medicina. Lembrando que estes santuários eram «polivalentes», o sociólogo Moisés Espírito Santo sustenta que «Endovélico foi protector dos viajantes», tendo em conta que «as viagens constituíam imensos perigos e muitos santuários se erguiam nos seus percursos.» É possível imaginar um local de culto como São Miguel da Mota, onde já não restam vestígios visíveis, «rodeado de alfurjas ou bancas comerciais de todos os géneros», pois «o comércio era e é um dos motores dos santuários.»
Além do templo, teria «estalagens para abrigo dos peregrinos e visitantes», servindo também de sítio de tratamento de doentes com os seus curandeiros e boticários, e um local de adivinhos, astrólogos e feiticeiros. Moisés Espírito Santos enfatiza que «os Santuários também eram sítios de encontros eróticos», e que os locais de culto do Endovélico nada tinham a ver com as «místicas penitenciais» da Igreja Católica. «Na área mediterrânica, as, as religiões antigas eram orgíacas, libertárias e festivas.»
Alandroal foi o sítio eleito pela Confraria da Rosa e do templo para a sua propriedade comunitária de 28 hectares, «que alguém do grupo já tinha visto anteriormente num sonho», conforme conta João Crisóstomo. Faz questão de frisar que as orientações espirituais da Fraternidade não se resumem ao Endovélico. «A nossa relação é com as forças de Portugal em geral. Em Tomar, estamos com a tradição dos Templários.» O grupo já teve mais de uma centena de elementos, hoje reduzidos a 20, e nasceu da «associação de carácter místico» fundada em 1914 por «um grupo de amigos» em Lagos. Foi alvo de perseguições no tempo de Salazar e depois do 25 de Abril dividiu-se em dois movimentos: a Fraternidade Rosa Cruz de Portugal e o Centro Rosacruciano de Lisboa, este último ligado à organização Max Heindel nos Estados Unidos. Ainda conheceu outros nomes até à designação actual, mas os seus elementos continuam a assumir-se rosacrucianos na matriz.
O Alentejo foi a grande fonte dos mármores com que se fizeram estátuas e monumentos da era romana um pouco por toda a Península Ibérica, como lembra Carlos Fabião, professor catedrático da Universidade de Lisboa. «Com a abundância de mármores na região, era daqui que vinha o material para a estatutária de grandes centros como Mérida», esclarece o historiador, que não entende por que é que este legado histórico não é valorizado como «marketing» por parte das empresas de mármores do Alentejo, muitas das quais já faliram ou estão com a corda na garganta. «Está aqui o mármore do tempo dos romanos, e não faz sentido que a indústria não tire partido dessa realidade.»
Carlos Fabião defende que o Alandroal deve criar uma marca regional em torno do Endovélico, até para promover os seus produtos típicos, como vinhos ou enchidos. «Isto nem é prostituição do património», sublinha o historiador, pondo a tónica na «obrigação moral de ajudar o Alentejo a não se tornar num deserto de pessoas».
Um galo de penas coloridas é solto, junto às pedras que os arqueólogos acreditam ter sido um altar de sacrifícios há vários milénios. Para nós, o ritual é como uma peça de teatro. «O galo simboliza o acordar, o renascer», explica João Crisóstomo, membro da Contraria. «Sempre vi o Endovélico com um corpo humano e uma cabeça de galo. Mas é uma visão pessoal.» Também acha «curioso» associar o nome de Portugal a «Porto Galo» ou «Porto Graal». Com os olhos azuis penetrantes, de águia, varre o cenário em redor. «Este é um local onde pessoas como nós vêm buscar forças telúricas através de orações espontâneas. Os povos antigos, do tempo do Endovélico, tinham esta relação privilegiada com as forças da terra.»
O Alandroal conserva na paisagem vestígios ligados a deuses pré-romanos, celebrados pelos povos que passaram pela região antes da era cristã. Escavações arqueológicas em São Miguel da Mota revelam que o local já foi um grande santuário do Endovélico, deus indígena «cristianizado» pelos romanos a partir do século I. Em 2002, foram descobertas seis esculturas, entre as quais uma Cariátide, provando que outrora houve ali «um edifício com uma certa dignidade», segundo o arqueólogo Amílcar Guerra, que dirigiu estas investigações. E muitos tesouros ainda podem estar escondidos. A falta de escavações nos arredores de Vila Viçosa, terra de mármores, «pode camuflar eventuais surpresas», como adverte Manuel Calado, que elaborou a Carta Arqueológica do Alandroal.
Orgias no templo
A São Miguel da Mota todos os anos acorrem grupos de pagãos em Junho, por altura do solstício de Verão, num «caminho do silencio» que também passa por Castelinho ou Outeiro da Águia, «outros locais ainda marcados por ancestrais cultos animistas». O ritual envolve a libertação de pombos, leitura de augúrios no voo das aves (à semelhança dos antigos oráculos) e votos de saúde. «Acreditamos que Endovélico nos ajuda na cura, e os que lá vão fazer votos têm tido respostas aos pedidos. Mas para isso é preciso a tal fé dos pagãos», salienta Isabel Andrade, presidente da Associação Cultural Pagã.
Ao Endovélico, «entidade infernal e benfazeja», atribuem-se múltiplos poderes, desde protector da região a deus da medicina. Lembrando que estes santuários eram «polivalentes», o sociólogo Moisés Espírito Santo sustenta que «Endovélico foi protector dos viajantes», tendo em conta que «as viagens constituíam imensos perigos e muitos santuários se erguiam nos seus percursos.» É possível imaginar um local de culto como São Miguel da Mota, onde já não restam vestígios visíveis, «rodeado de alfurjas ou bancas comerciais de todos os géneros», pois «o comércio era e é um dos motores dos santuários.»
Além do templo, teria «estalagens para abrigo dos peregrinos e visitantes», servindo também de sítio de tratamento de doentes com os seus curandeiros e boticários, e um local de adivinhos, astrólogos e feiticeiros. Moisés Espírito Santos enfatiza que «os Santuários também eram sítios de encontros eróticos», e que os locais de culto do Endovélico nada tinham a ver com as «místicas penitenciais» da Igreja Católica. «Na área mediterrânica, as, as religiões antigas eram orgíacas, libertárias e festivas.»
Alandroal foi o sítio eleito pela Confraria da Rosa e do templo para a sua propriedade comunitária de 28 hectares, «que alguém do grupo já tinha visto anteriormente num sonho», conforme conta João Crisóstomo. Faz questão de frisar que as orientações espirituais da Fraternidade não se resumem ao Endovélico. «A nossa relação é com as forças de Portugal em geral. Em Tomar, estamos com a tradição dos Templários.» O grupo já teve mais de uma centena de elementos, hoje reduzidos a 20, e nasceu da «associação de carácter místico» fundada em 1914 por «um grupo de amigos» em Lagos. Foi alvo de perseguições no tempo de Salazar e depois do 25 de Abril dividiu-se em dois movimentos: a Fraternidade Rosa Cruz de Portugal e o Centro Rosacruciano de Lisboa, este último ligado à organização Max Heindel nos Estados Unidos. Ainda conheceu outros nomes até à designação actual, mas os seus elementos continuam a assumir-se rosacrucianos na matriz.
O Alentejo foi a grande fonte dos mármores com que se fizeram estátuas e monumentos da era romana um pouco por toda a Península Ibérica, como lembra Carlos Fabião, professor catedrático da Universidade de Lisboa. «Com a abundância de mármores na região, era daqui que vinha o material para a estatutária de grandes centros como Mérida», esclarece o historiador, que não entende por que é que este legado histórico não é valorizado como «marketing» por parte das empresas de mármores do Alentejo, muitas das quais já faliram ou estão com a corda na garganta. «Está aqui o mármore do tempo dos romanos, e não faz sentido que a indústria não tire partido dessa realidade.»
Carlos Fabião defende que o Alandroal deve criar uma marca regional em torno do Endovélico, até para promover os seus produtos típicos, como vinhos ou enchidos. «Isto nem é prostituição do património», sublinha o historiador, pondo a tónica na «obrigação moral de ajudar o Alentejo a não se tornar num deserto de pessoas».
(...)
Culto desconhecido
Os mistérios ocultos da vida no Alandroal quase do tempo de Jesus Cristo podem ter vindo à superfície com as escavações arqueológicas de 2002, mas permaneceram enterrados na memória colectiva. Hoje, é quase gritante o desconhecimento generalizado face ao culto endovélico, apesar do tema apaixonar cientistas e místicos. «Se calhar, temos alguma culpa deste divórcio da população, que também é um índice do estado cultural do país», reconhece o arqueólogo Amílcar Guerra. Para outros, o actual interesse em «ressuscitar» o Endovélico é visto como um sinal. «As forças espirituais desta nação têm sempre os seus porta-vozes. E na próxima geração, outros virão», vaticina o rosacruciano João Crisóstomo. Os pagãos, por seu turno, prometem manter-se fiéis na peregrinação ao sítio onde «o Senhor da Montanha recebe o poder do sol», o milenar santuário de São Miguel da Mota. «Voltaremos todos os anos, porque acreditamos no poder deste local», garante Isabel Andrade. «O Endovélico não morreu.»
Culto desconhecido
Os mistérios ocultos da vida no Alandroal quase do tempo de Jesus Cristo podem ter vindo à superfície com as escavações arqueológicas de 2002, mas permaneceram enterrados na memória colectiva. Hoje, é quase gritante o desconhecimento generalizado face ao culto endovélico, apesar do tema apaixonar cientistas e místicos. «Se calhar, temos alguma culpa deste divórcio da população, que também é um índice do estado cultural do país», reconhece o arqueólogo Amílcar Guerra. Para outros, o actual interesse em «ressuscitar» o Endovélico é visto como um sinal. «As forças espirituais desta nação têm sempre os seus porta-vozes. E na próxima geração, outros virão», vaticina o rosacruciano João Crisóstomo. Os pagãos, por seu turno, prometem manter-se fiéis na peregrinação ao sítio onde «o Senhor da Montanha recebe o poder do sol», o milenar santuário de São Miguel da Mota. «Voltaremos todos os anos, porque acreditamos no poder deste local», garante Isabel Andrade. «O Endovélico não morreu.»
Reportagem de Conceição Antunes (texto) e Nuno Botelho (fotografia)
in, 80, 81, 82, 83 ÚNICA 3 Março 2007 Expresso
in, 80, 81, 82, 83 ÚNICA 3 Março 2007 Expresso
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