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quarta-feira, agosto 27, 2008

Cinema

Jekyll& Jekyll, Hyde & Hyde
As duas mais célebres adaptações da história de Robert Louis Stevenson produzidas na Hollywood clássica.
Luís Miguel Oliveira
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O Médico e o Monstro
De Rouben Mamoulian
*****
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O Médico e o Monstro
De Victor Fleming
****º
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Warner (Colecção Essenciais Warner)
Extras
****º

Reunidas num só disco, eis as duas mais célebres adaptações da história de Robert Louis Stevenson produzidas na Hollywood clássica.

Muito mais conhecida a versão de 1941, dirigida por Victor Fleming e protagonizada por Spencer Tracy e Ingrid Bergrnan; mas genial, e uma das grandes obras-primas da Hollywood dos “thirties”, a versão de 1931 de Rouben Mamoulian, com Fredric March e Miriam Hopkins.

Fazê-las coexistir na mesma edição repara uma injustiça: a versão 41 foi responsável pela obscuridade em que durante décadas viveu a versão de 1931 porque a MGM, seguindo prática das “majors” na época, adquiriu os direitos do filme de Mamoulian (que era uma produção Paramount) apenas para o fazer desaparecer de circulação. A versão Mamoulian é genial, mas a versão Fleming é também muito boa. Ilustram coisas diferentes a partir da mesma história. Dez anos na Hollywood desta época eram uma eternidade, tal a velocidade a que o cinema americano se movia.

A versão Mamoulian testemunha a vitalidade inventiva, “experimental”, do tempo em que Hollywood incorporava a grande novidade técnica daqueles anos, o som (então jovem de quatro anos), e a conciliava com outras proezas, relacionadas com a mobilidade da câmara (fenomenal sequência de abertura) e os efeitos especiais (a primeira transformação de Jekyll em Hyde, feita em plano único com recurso a filtros na objectiva e uma maquilhagem “invisível”, é ainda extraordinária).

A versão de Fleming ilustra, entre outras coisas, o tempo de um classicismo consolidado, um modo de fazer e de narrar onde o todo é sempre superior à soma das partes. Mas aconteceu ainda um pormenor decisivo no tempo que mediou os dois filmes. A entrada em vigor do Código de Produção, o “Código Hays”, com a sua lista de interditos.

A versão de Mamoulian é exemplar desses últimos anos “pré-código”, quando a censura moral ainda não tinha letra de lei. Mesmo que a versão Fleming não seja apenas um filme da época do Código, e seja um reflexo do “moderado” estilo da MGM (a mais conservadora das “majors”), é interessante comparar, por exemplo, algo tão simples como o vocabulário. Mas claro que as diferenças são mais fundas - a sugestão sexual da versão Mamoulian é fortíssima: a primeira sequência entre March e Hopkins é antológica, e até inclui, no plano da bengala dele na liga dela, o tipo de simbologia obscena que mais tarde Bunuel tanto praticaria, antes determinar com a bamboleante perna despida de Hopkins a acompanhar, em longa sobreposição, os passos do Dr. Jekyll, não deixando dúvidas a ninguém sobre a real motivação das suas transformações em Hyde.

A versão de 1941 atenua isto, caminhando mais para terrenos melodramáticos, assim como se preocupa em atribuir à personagem de Bergman uma aura mais aceitável (é funcionária “dum” cabaret, mas Hopkins era funcionária “num” cabaret). Do mesmo modo, o recorte de Tracy é mais trágico, é mais vítima de algo que correu mal; March, no filme de 1931, mesmo que gere um Hyde mais primitivo (um animal, simiesco), não deixa que o seu Jekyll, tenso e nervoso, instaure uma divisão assim tão grande: Hyde é apenas o seu prolongamento voluntário.


Resumiríamos assim: o filme de 1931 ilustra o génio de Mamoulian, e o de 1941 ilustra o génio do sistema. Cópias óptimas, e um extra valioso: o filme de Mamoulian com comentário audio do historiador americano Greg Mank. Como “bónus”, uma curta-metragem de Bugs Bunny, “Hyde and Hare”, parodiano a história de Stevenson.