\ A VOZ PORTALEGRENSE: No Centenário de Hergé

sexta-feira, junho 29, 2007

No Centenário de Hergé

MEMÓRIA
RUI RAMOS
O QUE APRENDI COM TINTIM
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Tintim não é só Banda Desenhada.
Rui Ramos vê na personagem de Hergé os primeiros sinais de uma predisposição conservadora liberal. Uma viagem pessoal mas transmissível à personagem mais simbólica da BD do século XX.
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Segundo parece, a memória, quando lhe dá para se desligar, começa pelas aquisições mais recentes. Não me inquieta demasiadamente esse encadeamento das trevas. Um dia, voltarei a saber apenas o que aprendi com Tintim: estará assim ressalvado o mais fundamental, e muito do acessório. Não digo isto para fazer de Tintim o que não é. É apenas uma banda desenhada. No mesmo sentido em que Great Expectations é apenas um romance, DieWaIkure apenas uma ópera, ou La Régle du Jeu apenas um filme. Dir-me-ão que Tintim é leitura para jovens. Direi que o mesmo se passa com alguns grandes livros escritos para os adultos do século XIX e que entretanto se tornaram obras para os mais novos. O centenário do seu autor, Hergé, obrigou muita gente a falar de Tintim no passado mês de Maio. Aqui, vou perguntar apenas isto: que educação deu Tintim aos leitores que no século XX lhe esgotaram 240 milhões de álbuns em dezenas de línguas? Respondo apenas por mim: a mais adequada para quem acabou a ver o mundo de uma perspectiva conservadora liberal.
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Arte e informação
Tintim ao lado de Burke, Tocqueville e Hayek? Estarei a brincar? Foi Roger Nimier, em 1959, o primeiro a tentar intelectualizar Tintim. Anos depois, a tarefa passou a ser levada muito a sério por aquela parte da humanidade que precisa de fazer mestrados e doutoramentos. É bom não esquecer o que temos: páginas com bonecos dentro de quadradinhos e texto em balões. Os livros contam aventuras em sítios exóticos, por entre uma profusão de efeitos cómicos e piadas clássicas - a minha favorita é dita por Dupond em Explorando a Lua: «estamos na lua, onde nunca a mão do homem pôs o pé» (há uma variante em Tintim e os Pícaros, quando o professor Girassol se abstém de cumprimentar um coronel latino-americano: «recuso-me a apertar uma mão que espezinha os direitos humanos»).
O mundo de Tintim é, em primeiro lugar, o mundo da imprensa. Tintim é um repórter. As suas histórias, entre 1929 e 1944, foram estreadas em jornais diários de Bruxelas. Surgiram assim rodeadas e impregnadas de actualidade noticiosa. Frequentemente, notícias de jornais servem de rastilho para a acção, como no começo de As Sete Bolas de Cristal. Os livros de Tintim passam em revista o noticiário do século XX, desde a luta entre árabes e judeus na Palestina (o No País do Ouro Negro), até à espionagem durante a Guerra Fria (O Caso Girassol), ou à especulação sobre os OVNIS (Voo 714 para Sidney). A documentação foi sempre uma obsessão do seu autor. Tal como os escritores realistas à Zola, Hergé viajou num cargueiro para preparar o Carvão no Porão (também conhecido, em português, por Perdidos no Mar). O gosto da informação, e não apenas o do romanesco, é o ponto de partida de Tintim.
Hergé era um grande artificie. Mais: era uma equipa de artificies. Edgar Pierre Jacobs, Bob de Moor, Roger Leioup, Jacques Martin ajudaram-no a desenhar e, sobretudo, a redesenhar, porque os livros foram constantemente retocados (há três versões da Ilha Negra). O desenho de Tintim tornou-se uma imagem de marca: tudo está delineado nitidamente, sem jogos de luz e sombras (à Milton Caniff), numa mistura perfeita de realismo e de caricatura. Um álbum de Tintim é uma iniciação à arte de contar histórias através de sequências de imagens. Nunca ninguém o fez melhor do que Hergé. Cada página termina em suspenso, puxando para a seguinte. A acção dramática principal, protagonizada por Tintim, está sempre habilidosamente entrelaçada com uma diversão humorística, da responsabilidade dos seus comparsas (Milú, Dupond e Dupont, Haddock, Girassol). Cada personagem tem tiques e linguagem próprias. A capacidade de criar um ambiente é inultrapassável: basta lembrar a cena da trovoada em As Sete Bolas de Cristal. As invenções narrativas são prodigiosas: em O Segredo do Licorne, seguimos simultaneamente a luta do cavaleiro Haddock com piratas no alto mar e Haddock a contar a história no seu apartamento. As Jóias da Castafiore são a suprema demonstração de uma arte: um livro de aventuras onde nada se passa.
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Sabedoria
Tintim começou como um produto do interesse do movimento católico pelas revistas ilustradas para a juventude nas décadas de 1920 e 1930: foi um padre (Norbert Wallez) quem encomendou Tintim e Milú para o suplemento juvenil de um diário católico de Bruxelas, e foi graças a outro padre (Abel Varzim, estudante na Bélgica) que Portugal se tornou o primeiro país do mundo a traduzir Tintim, em 1936. Todos esses padres viram em Tintim um bom escuteiro católico. Nas suas primeiras aventuras, fez o que esperavam dele: denunciou o bolchevismo na Rússia (1930), censurou o capitalismo na América (1932) e recomendou a colonização em África (1931). Mas ele chegou a ser o perfeito cavaleiro cristão? Tintim nunca teve família, o que chocou o público católico belga - e obrigou Hergé a inventar Jo, Zette e Jocko como compensação. «Não sabemos quem ele é, donde veio», notou Pol Vandromme em 1959, no primeiro e melhor livro dedicado a Tintim (Le Monde de Tintin). Também nunca o vemos amoroso. Nem a lutar pelo seu país, ou a rezar a um deus. Que mundo é o de Tintim? Um mundo onde o desejo e a obrigação não encontram os termos através dos quais a sociedade consente que mais facilmente se explicitem: o sexo, a família, a religião ou a nação. É um mundo de total liberdade individual, mas também de total envolvimento e responsabilidade. Os compromissos de Tintim são voluntários, o que não quer dizer que não sejam intensos: pode ir aos Andes ou aos Himalaias resgatar um amigo. É o mundo do escuteiro católico? É também o mundo do ponto de vista de uma imaginação que poderia ser classificada como liberal.
Em histórias que cobrem quase todo o noticiário do século XX, só um tema não aparece. E não por acaso, o maior de todos: a II Guerra Mundial. Entre 1939 e 1945, Hergé escreveu cinco álbuns - nenhum deles refere a guerra. A atmosfera de tensão do Verão de 1939 surge, vagamente, em No País do Ouro Negro, começado em 1939, interrompido em 1940, e só concluído em 1951. Mas a única menção directa da guerra está na capa de um livro inglês em O Caso Girassol, de 1956. Este silêncio tem uma razão biográfica. Oficialmente, Hergé foi durante anos um belga francófono, de uma família de classe média, autodidacta em quase tudo, criado entre as salas do cinema mudo e o escutismo católico (foi nas revistas dos escuteiros que se estreou como desenhador), e dado a excessos de trabalho e depressão. Nos últimos anos, porém, os seus biógrafos desenterraram outro Hergé. Alguém que deveu o conhecimento da banda desenhada americana a um amigo chamado Léon Degrelle, que se tornaria o chefe do partido fascista belga e tenente-coronel das SS. Degrelle viria a reclamar, anos depois, ter sido a inspiração para Tintim. Entre 1940 e 1944, Hergé publicou as novas aventuras de Tintim no Le Soir, o órgão da “nova ordem”, na Bélgica ocupada pelos alemães. Sem vocação histriónica e demasiado artista, nunca arriscou a militância pública dos amigos fascistas. Mas estava suficientemente alinhado com eles para ser preso em Setembro de 1944, depois do fim da ocupação. A vingança dos antifascistas varreu os seus amigos mais próximos: vários foram condenados à morte e a pesadas penas de prisão. Hergé teve o nome na “lista negra”. Sobreviveu graças ao enorme sucesso das suas bandas desenhadas durante a guerra. Alguns antifascistas, empenhados em arranjar um negócio editorial lucrativo, interessaram-se pela fundação de uma revista Tintin (1946). Naturalmente, mexeram os necessários cordelinhos para eximir o principal autor da nova publicação a um processo por colaboracionismo.
É verdade que em O Ceptro de Ottokar, de 1939, Tintim enfrentou a conspiração de um partido fascista, chefiado por um Musstler (Mussolini+Hitler), para tomar o poder numa monarquia dos Balcãs. Mas também é verdade que Tintim veio do lado dos que perderam a guerra em 1945. Que educação esperar então destes livros? Não será esta literatura uma perigosa fonte de corrupção para juventudes democráticas? Além do escrúpulo artístico, uma coisa resgatou Hergé: a perseguição que sofreu em 1944-1945. Essa experiência obrigou-o a enfrentar os limites de tudo e de si próprio. Não renegou amizades. Talvez nem tenha mudado de ideias. Mas aprendeu a não esperar muito do mundo. A desconfiança é talvez o traço característico de Tintim. Nas suas histórias passa uma aragem impiedosa de iconoclastia - o quadro final de Tintim e os Pícaros tira as consequência; mais radicais do eterno retorno na política. Como explicou Hergé, Tintim não luta pela ordem estabelecida nem por uma ordem a estabelecer, mas apenas pelos amigos e por aqueles que precisam de ajuda. É costume fazer derivar a sabedoria de uma intrínseca grandeza de alma ou do acerto das companhias escolhidas. É uma ideia ingénua. Às vezes, a sabedoria depende disto: do azar de ter ficado do lado errado e do preço pago por isso.
Nos livros de Tintim, encontro a mistura mais acertada das três principais qualidades de um conservador liberal: a vontade de saber muito, a determinação de acreditar em muito pouco e a convicção de que nenhum ideal humanitário nos deve fazer esquecer as pessoas reais que estão à nossa volta. A mistura de curiosidade e cepticismo assegura-nos que a disponibilidade para nos deixarmos maravilhar não acabará na prostração dogmática, nem que a resistência às ortodoxias resultará em secura e cinismo. O princípio da proximidade garante-nos que a vontade de fazer bem não conduzirá a abstracções separadas dos que realmente existem - isto é, à vontade de fazer mal. Agrada-me pensar que, graças a Tintim, foram estas as primeiras coisas que aprendi e as últimas que esquecerei.

in, ATLÂNTICO - JULHO 2007 – p.18 e 19